terça-feira, 13 de junho de 2017

Elogio da saída de Trump do Protocolo de Paris, seguido de ascensão e queda de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro





                             


                          


Toda a gente sabe que os grandes responsáveis pelas emissões de CO2 são os vulcões, as plantas, quando estão a dormir, e as vacas. Como não se pode andar a tapar os vulcões todos, resta impedir as árvores de dormir e tentar pôr um travão nas vacas. Ora, creio que impedir as árvores de dormir deve ser das tarefas mais penosas do mundo, talvez só comparável com andar a tapar os vulcões todos, pelo que se torna inevitável debruçarmo-nos mesmo sobre as vacas.

As vacas dividem-se em duas espécies, as que deus e o intelligent design já conceberam como tais, e as outras, que são fruto de um longo processo de sociedade e aculturação. As vacas naturais existem na forma atómica, ou seja, uma vaca, um corpo, uma emissão. Já as vacas culturais subsistem na forma molecular, mediante uma ligação covalente, em que a vaca capta um ou mais bois, e entra numa situação dativa, em que é apenas o boi, ou os bois, a fornecem os meios de subsistência da relação.

Crê-se que isto é assim, pelo menos, desde Eva e Dalila, até ter culminado no Santuário da Casa dos Bicos E nada disto é chocante, nem penoso, posto fazer parte da mais elementar História do Mundo. Torna-se, sim, inquietante, quando nos debruçamos sobre os números da Demografia, que nos dizem que, aquando da Revolução Industrial, ainda andávamos pelos 1 000 000 000 de andantes, quando agora, séc. XXI, já andamos a sonhar com a poluição de dez mil milhões de almas penadas.

Num célebre exemplo da Estatística e da importância da correlação na análise de dados, ocorrido na Inglaterra, de novecentos, da vaca pré-May, já se tinha sinalizado um simultâneo aumento de criminosos e padres anglicanos. O Marques “Magoo” Mendes, na sua iluminação, imediatamente extrairia de aqui uma relação profunda entre o sacerdócio e o crime, quando a correlação é, de facto, nula, e apenas se deve à existência de um terceiro fator, o do aumento brutal das gentes, que simultaneamente conduziria a um brutal aumento de crimes e também de... sacerdotes.

E já que aqui falámos de brutal aumento de população, creio que é o tema ideal para começar este texto, esgotado o que fica para trás, e vocês devem ler apenas como prolegómeno.

Deve entender-se que o brutal crescimento da população é, a par com os vulcões, o sono das árvores e as vacas, a principal fonte de emissão de CO2. E é-o por dois motivos, um imediato, o de que qualquer humano, na sua qualidade elementar de qualquer vaca, é um libertador direto de CO2, e igualmente um potencial libertador de CO2, na infinita plêiade de lixo e pegada ecológica que a sua apetência por filhos, carros, casas, hambúrgueres, roupas, viagens, festivais, skates, surfs, barbas, iPhones, iPads, Samsung Galaxy e outras coisas afins provoca.

Deve entender-se que a simples existência de cada humano, apesar de constituir tão-só 1/1 000 000 000 000 (e este número é mera ficção) da atividade de um vulcão, já é cerca de um milhão de vezes pior do que os puns das vacas, e apesar de ser este número igualmente fictício, creio-o largamente mais eloquente do que todos os puns dos vulcões.

Por outro lado, e pela sua própria natureza, toda a gente sabe que, sendo todos os humanos iguais, há uns que são bastante mais iguais do que os outros.

Assim, é já dentro dos humanos que ocorre a explosão, ainda mais prejudicial, da vaca humana, a qual junta todos os defeitos das vacas aos defeitos do humano. Sendo que, como disse, cada vaca se faz sempre acompanhar, por covalência, por um corno manso, e que a mansidão do corno se encontra, na maioria das vezes, associada à potência da exibição da alta cilindrada, a emissão de CO2 começa, só por cada vaca, a tornar-se realmente inquietante.

(Dirão os otimistas que, se a vaca se expande toda em CO2, já o boi é mais modesto, e põe a alta cilindrada, por economia, a emitir o seu CÊ Ó UM (CO). No meu entendimento, a poluição deve ser vivida como a mesma, sendo que a opção entre CO2 e CO se deve apenas a uma opção de corno manso, cujo debate químico terei de atalhar aqui).

O Donald Trump abandonou, e muito bem, o Protocolo de Paris, por que entende que ele deve renegociar-se em condições mais favoráveis para os Estados Unidos. Creio que, com o seu piscar de olho, Donald Trump nos veio dizer que pretende renegociar o papel da Ivanka e da Melania no rol da poluição do Mundo, e nós devemos ser muito respeitadores e ficar a aguardar.

Para mim, todavia, tal coisa não chega, e creio que, em vez de andarmos a assinar Protocolos de Paris, que apenas asseguram que os presentes vão ter de começar a viver pior, para poderem assegurar o viver ainda pior dos que aí vêm, por que continuam a proliferar que nem coelhos, era a altura certa de pôr um travão à Euforia do Falópio. A história da poluição do mundo confunde-se com a história da sobre ocupação do mundo, e a lógica está invertida nos termos, não é a Humanidade que está a produzir mais lixo, é apenas cada vez mais humanidade, que, produzindo o mesmo, ou até menos, lixo, estará sempre a criar maior poluição, e deve cortar-se na Humanidade e o lixo imediatamente se verá diminuído. E, já que a Religião tem andado a invadir todos os cenários, era altura de nos questionarmos sobre por que é que ainda não foi retirado do clausulado religioso o célebre “crescei e multiplicai-vos”’, e esta é a minha primeira proposta para a revisão do Protocolo de Paris, que eu vou já enviar ao Trump da América.

O resto não é melhor, já que o “crescei e multiplicai-vos” se faz por forma direta, e por forma indireta, sendo que, se a forma direta já é má, a forma indireta ainda consegue ser substancialmente pior.

Na forma direta, creio que o futuro Protocolo de Paris, já revisto pelo Presidente Trump, deverá conter uma séria recomendação, e com multas, aos credos que continuem a incitar a procriar. Pode incluir drones que lancem choque elétricos, sempre que alguém se esconder nas moitas para práticas sem contracetivo. Na forma indireta, estas recomendações e multas deverão ser estendidos a todas as formas indiretas de procriação, a saber, fufas e bichas que, com  tanto órfão, insistem em ir à pipeta, e, mais grave do que tudo, aos que, por soberba e cobardia, recorrem às barrigas de aluguer, e aqui chegamos a um dos cúmulos da emissão de CO2, e não só, Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, que nasceu da barriga, não de aluguer, da Dona Dolores, e até foi da mesma criação, também não por aluguer, se entretanto não se pagou para se alterarem os registos, da sua bela irmã Ronalda.

No tratado das vidas exemplares, Plutarco teria tido muito trabalho em encaixar o Cristiano Ronaldo, e, no entanto, ele foi insidiosamente ocupando um protagonismo e um monopólio culturais, cuja nocividade só os vindouros conseguirão avaliar na total extensão dos seus estragos. Começou na infância, a qual, cumprindo a profecia, teve necessariamente de ser pobre e indistinta, para depois se poder dar a revelação. Como a Irmã Lúcia, ambos não puderam ser crianças e vinham já condenados a uma reclusão na idade adulta. A primeira cumpriu um voto de silêncio, e ele deveria ter tentado cumpri-lo. Se a primeira até sabia falar e teve mesmo de se calar, já o Ronaldo deveria ter-se limitado tão-só a aprender a estar calado sempre que devia, e devia estar sempre calado.

Esta liquefação de papéis culturais só encontra paralelo no Maxwell, da fusão do Campo Elétrico, e do Campo Magnético, no Campo Eletromagnético. Em Portugal, o Campo Eletromagnético foi fechado no Carmelo, e, em contrapartida, foi deixado à rédea solta no Real Madrid.

A fase seguinte é a da ascensão e dos maus exemplos. Ao contrário do Ronaldo, a Lúcia usou sempre o mesmo par de botas, nunca se depilou, e tinha um modesto orgulho no seu bigode. Consta que nunca fez milagres, a não ser na fase terminal, e como era justa, deixou o protagonismo para os irmãos desvalidos. Um dia, caiu uma criança no Brasil, e a criança sobreviveu, apesar da perda da sua massa encefálica. Na realidade, o verdadeiro milagre é o da atual sobrevivência dos milhões de rastejantes, independentemente da conservação, ou não, das respetivas massas encefálicas. No final disto tudo, foram o Francisco e a Jacinta que avançaram para a canonização, e a Lúcia, prudente, ficou só beata, naquele princípio de que os mandatos das presidências estão sempre limitados a oito anos, enquanto as vice-presidências se podem manter vitaliciamente. Beata, mas não estúpida.

O Ronaldo começou por ser ninguém, até uma mão ignota o ter convertido no melhor da sua pequena casa. Da pequena casa, passou a ser o melhor da sua cova da iria, e, de cova em cova da iria, lá o transformaram no Melhor do Mundo. O atual processo já sonha com a extensão a Marte, e lá virá. Depois do estádio e do aeroporto, falta o nome do exo planeta e da galáxia. O processo está todo em Barthes, Castoriades, Lipovetsky, Eco e muitos outros. Só que ninguém acreditou nesta semântica cultural, até ela se ter instalado.

A pegada ecológica disto é gigante. Na ausência de um oscar wilde interior, Ronaldo não procurou o melhor de tudo, mas aquilo que, de tudo e em tudo, fosse sempre o mais caro, e o caro torna-se inevitavelmente ainda mais caro, se for por ele, Ronaldo, patrocinado.

É paradigmático que o Ronaldo seja agora caçado pelo Fisco, não pelo dinheiro do que joga, por que sobre isso as opiniões até são as mais diversas e contraditórias, mas, sim, sobre essa coisa suspeita do que são os seus “direitos de imagem”. No ar de fábula de que este texto se revestiu, é urgente relembrar o existencialismo lafontainiano de Cristiano Ronaldo, e de como não lhe chegando ser rã, tanto o empurraram que acabou por se tornar num boi.

O mais grave nem é o que tudo o que é ditado por estas estrelas do mau exemplo, mas o ser imediatamente imitado por milhões, pelo planeta fora. Pouco interessa o que o Ronaldo faz, ou não faz, mas sim a tal plateia sombra que há muitos anos estava à espera de que o Cristiano Ronaldo fizesse para validar o poderem fazer também. E assim proliferaram as depilações, os brincos, as pulseiras e as sobrancelhas arranjadas. A nossa era, a Era Trump, é deplorável, e mais deplorável ainda é o tempo de antena que a Civilização perde nisto... E, assim, é aqui chegado o momento de perorar sobre toda a (in)finitude da vaidade humana.

Nos reflexos da Natureza, compete à fêmea, no apagamento natural dos dotes do seu corpo, propagar a vaidade do seu pavão. O preço é cruel, já que ela oferece ao progenitor uma réplica eficaz daquilo que ele perdeu anos a contemplar no espelho, mas a contrapartida é sempre cruel, por que lhe exige faturação e sustento para todo o resto da existência. Estas são as leis da natureza, e tudo o resto são soluços da Teresa Guilherme,nua, desnuda, pelada, à poil & stark naked.

A comissão de promoção do fenómeno Ronaldo também aqui foi prudente, e seguiu o consuetudinário das normas da Igreja: não casar o padre, para que o património não sofra diluição. Por um princípio de máxima satisfação, conseguiu assim dar a vaidade ao progenitor, através da solução de um clone de um plano pré-pago: ela recebe à cabeça pelo serviço, e evitam-se depois protagonismos e divórcios. O Ronaldo, demiurgo, desta forma cumpre as pegadas de Jesus e de Apolónio de Tiana, e concebe, não sem pecado, mas sem gaja, por que as gajas são sempre uma chatice, exceto quando se tornam urgentes e necessárias para as foder. Os menos sofisticados preferem as bonecas insufláveis e as bonecas sem ossos, da Deep Web. A solução Ronaldo é uma espécie de meio termo moderado, para consumo lato na forma de pacote integrado. Creio que os maus tratos às mulheres também deverão estar para ser, em breve, validados.

Cristiano Ronaldo é a apoteose da misoginia, e o pontapé, do alto dos seus voláteis trinta anos, em trinta mil anos do louvor da Mulher na Cultura Humana. E assim se cumpriu mais um suspiro das claques.

Na fase sequente do milagre, passou do filho único aos gémeos, ou seja, numa ótica fisicista elementar, se, no primeiro processo, foi necessário ter uma barriga de aluguer para assegurar a parturição de um filho, já no obrar de dois gémeos devem ter sido necessárias duas barrigas de aluguer. Ora, somada a primeira às duas últimas, isto faz três barrigas de aluguer, com todo a consequente emissão de CO2 que isso comporta.

Na lógica da ascensão, passava-se da beata Lúcia e dos santos Jacinta e Francisquinho para a próxima vizinhança da virgindade de Maria. Depois da conceção sem pai se avizinhar da conceção sem mãe, era preciso apontar mais alto, e mostrar que o novo Messias ainda continuava a conter uma costela de humano. E assim se fez a Georgina, que nega a gravidez, mas a sua negação da gravidez pode ser ainda mais grave do que a gravidade do emprenhanço, por que se não é um futuro emissor de CO2 o que agora ali se anuncia, até pode ser que o inchaço nem passe mesmo de um imenso depósito de metano. Quando ela o soltar, tal bufa fará tremer todo o Protocolo de Paris e até os das cidades vizinhas, o que mais uma vez dá razão ao Donald Trump...

Do ponto de vista da Física, a coisa é ainda mais grave, já que, com a Georgina a contrapor-se às barrigas de aluguer, o problema se deslocou, quanticamente, da incerteza da maternidade para a incerteza da paternidade. Tudo o resto assenta na indecisão da numerologia: e, se, desta feita, já são três, fica só a faltar agora o matrimónio para cumprir a profecia do Hermann: sempre casados e sempre pais de três filhos.

No meio disto tudo, foi o Fisco Espanhol a finalmente vir deitar uma desagradável água fria neste noivado da indecência universalA História dos Impostos divide-se inexoravelmente entre dois atores, os que nunca pagaram impostos e os que sempre tiveram de os pagar, sendo que a segunda categoria, num horizonte ideal, sonharia sempre com converter-se na primeira. Na hora da verdade, o olhar da justiça social só se projeta sobre os que são apanhados a meio da metamorfose, e foi aqui que a Fazenda justamente atacou, no momento exato em que o bloqueio ao Qatar revela como Futebol e Terrorismo, tráficos, Daesh, branqueamento de capitais e fuga aos impostos andam de mãos dadas. A ascensão deste fenómeno destruiu o que ainda poderia haver de desporto, no Futebol: mesmo para os que gostem de Futebol, hoje é impossível falar-se de Futebol, sem que as discussões não sejam imediatamente canalizadas para a poluição provocada por Cristiano Ronaldo.

Do ponto de vista do espectador, a coisa é infinitamente nefasta. Do ponto de vista do jogador, creio que seja igualmente preocupante: sempre que o Ronaldo entra em campo, qualquer adversário seu já não se encontra a defrontar um qualquer jogador humano, mas a sofrer um choque anafilático, de que nem Plotino se lembraria: contemplar, face a face, os holofotes brutais que o encandeiam e lhe dizem que nunca deverá ousar perturbar tal inquietante máquina de manobra e iluminação. Na realidade, só um louco ousaria defrontar essa incandescência ex-machina com que a sociedade foi intoxicada, e, portanto, em campo, perde-se agora sempre, e perde-se sempre que o Ronaldo agora entra.

O Cristiano Ronaldo é o exemplo mais gritante da Pós Verdade no Desporto.

É verdade que todos os episódios sequentes são ainda imprevisíveis. Como se sabe, falta ainda o Mourinho. Avanço, como previsão, que uma vez ferida a aura de Ronaldo, os bons jogadores, um após outro, o comecem doravante a vencer. E esta reviravolta é tão miserável, na queda, como foi na ascensão, mas é a lógica das reviravoltas. Está tudo previsto nas cúspides das Catástrofes de René Thom, mas a hora desta emergência continua a não deixar de ser injusta, exatamente agora, quando iam começar a surgir os milagres da beatificação (em vida) do Ronaldo.

Como podem supor, este texto poderia torna-se infinito, fosse eu pelas emissões de CO2 da Dolores, da Katia e da Ronalda, pelo que cumpre suspendê-lo agora, até o voltar a retomar. Adianto, pois, que, sendo a canonização do Ronaldo coisa ainda em profundo segredo nos bastidores do Vaticano, apenas ouso avançar com duas pequenas inconfidências: a de que o processo decerto passará pelo reconhecer do milagre do demiurgo que ousou corrigir deus, sobretudo na forma por deus destinada aos seus dentes e aos dentes da Dolores, e também o milagre desta espantosa fraude ter durado o tempo todo que durou, e ainda continuar a durar. Assim seja.


Amén.





(Dueto do fim dos mitos, no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")

sábado, 13 de maio de 2017

Fátima, Futebol e Festivais





Sou daqueles cujas crenças ficaram pelos mistérios de Abidos e Elêusis. Considero que tudo o que veio a seguir foi relativamente menor, embora me comovam algumas palavras do profeta Cristo, as práticas do Buda tardio, quando o Rumi se espanta com permanecermos na jaula, quando a porta há muito foi aberta, ou com o Pascal a olhar para as estrelas de uma certa forma. Creio que o lugar das coisas religiosas é uma parte notável da natureza humana, tal como a crendice é o quintal das traseiras da natureza da hominização.

Depois disto, creio que não se espantarão que venha falar de Fátima e dos outros dois "éfes", e pois é que venho mesmo. O cristianismo, na sua fase tardia, fundamentalista e desacelerada, aproxima-se muito das posições canónicas de Hegel, e quer tratar rápida e definitivamente, das arrumações que faltam para o fim da História. Creio que já escrevi algures que o princípio destes problemas até tinha um rosto e um tempo, embora as exéquias já o tenham apartado de nós. Mais coisa, menos coisa, Woytila, um mineiro obstinado, encarregou-se de minar o cânone religioso, ao ponto de os tetos desabarem sobre os fojos escavados em baixo, e lá deixarem soterrada meia humanidade. O processo é conhecido, e só falta fixá-lo em texto, já que a distância ditada pela História nos começa a dar liberdade de datar.

Woytila, tal como Benedito XVI, Ratzinger, foi um dos flagelos das crenças, ao ter introduzido uma miserável antipedra filosofal que transformou tudo o que fosse religião em crendice. Há quem o compare à metodologia chinesa de fabricar em massa, e sem qualidade. Na realidade, quando entendeu que, depois de milénios de equilíbrio, o Cristianismo devia, finalmente, avançar para a globalização, independentemente das fronteiras dos outros, o podia fazer como calhasse. Os resultados são sabidos: por cada viagem que fez às fronteiras exóticas, o islamismo radical respondeu com estados párias, mecas da violência e ISIL sem barreiras. Quando se pergunta qual a origem do chamado fundamentalismo, é bom que nos lembremos de que foi santificado com o nome de João Paulo II. Mefisto é, decerto, um dos seus maiores adoradores, et pour cause.

O problema destas coisas é como o das mulheres de aluguer, que o tempo acabará por tornar sérias: passadas umas quantas décadas, o próprio problema perde a pertinência, e já ninguém se recorda dos tempos antes. Com Woytila assim foi, e a memória eclipsou os tempos em que o cristianismo era uma religião e não uma crendice de rastejar por Fátima, como hoje se tornou. Como rosto da globalização, era necessário fazer chegar a muitos mais o mesmo produto, ainda que degradado. Na verdade, esse franchising dos credos era fácil de engolir, rapidamente digerível, e não deixava rasto, para além dos magnetes pardos de colar no frigorífico, com a fuça da jacintinha. A massificação do religioso, tal como os megaconcertos, rege-se apenas por uma miserável emergência da simplificação.

Penso que os piedosos não devem ser obrigados a acompanhar o processo, mas, infelizmente, a sua agonia assemelha-se muito ao destino do comércio tradicional, perante a vertigem do fast food. Creio que desenvolver isto seria moroso, e vamos já passar a Fátima: o lindo serviço que Bergoglio, o bispo de Roma, veio hoje fazer à Cova da Iria é uma vergonha, e altamente prejudicial para o que resta das nossas poucas coisas culturais. Diz que para passar às coisas notáveis da Religião já não é necessário passar pelas provações mentais de Agostinho ou Aquino, mas basta aparecer pastorinho, analfabeto e vitimado pela pneumónica. Como a coisa faz jurisprudência, amanhã venderá bem e poderá ser traduzido na forma simples dos recuerdos.

O segundo flagelo nacional é o Futebol, ao qual voltaremos num outro tempo. Chegam-nos hoje as suas metamorfoses, a primeira, a que transformou a necessidade global de futebol numa simplificação de trazer por casa, a necessidade de Cristiano Ronaldo. Durante anos, sentia-se, nos telejornais, a angústia de ter de passar pelas banalidades das notícias importantes para, finamente, se poder trazer ao espectador o manjar da coisa desejada, o monótono perorar do esférico. Com o tempo, a coisa refinou, e sentia-se, com angústia, ter de papar o futebol, quando na verdade, o que se queria era falar de cristiano ronaldo. Fosse Freud vivo e a coisa se explicaria, mas, com ele morto, ainda se explica melhor.

Na verdade, há muito de Fátima em Ronaldo, e basta pensar naquela que concebeu filho sem pai, para rapidamente acabar naquele que gosta de conceber filhos sem mãe.

Por rapidez, vamos à terceira epifânia, a do Salvador Sobral, um fenómeno meteorológico muito parecido com o célebre Zé Maria, da Teresa Guilherme. Há uma certa tonicidade no badalhoco, e um enorme faz de conta do simplório. Distingue o primeiro do segundo ter sido o primeiro um campónio, sem eira nem beira, e o segundo um produto altamente elaborado dos mecanismos de intoxicação social, como se pode ver, e ainda mais se verá. O que me choca no Sobral não é a música, uma bela balada digna de bons filmes de Woody Allen, mas alheia a um lugar cultural com timbre nacional. Faz muito lembrar Al Bowley, mas um Al Bowlly, do "Midnight, The Stars And You", e em mau. O pior da coisa é o incesto, ou uma certa veia incestuosa, indizível, mas vociferante. No final da coisa, depois de tocado o teclado do coitadinho, até podia morrer na véspera da apoteose festivaleira, para realmente poder ir cantar por ele a irmã madrasta e madrinha, do final da fábula. Como podem imaginar, tudo isto me toca muito pouco, exceto na sua conjunção, que é verdadeiramente diabólica, e assenta num patamar ainda abaixo: o Futebol, depois de se degradar em Ronaldo, ameaça voltar a degradar-se ainda mais, ao regressar ao Futebol, e o Futebol ao Marquês de Pombal.

Globalização, globalização, era mesmo o Cristiano Ronaldo ir à Ucrânia receber a bota de ouro, e a Lúcia ser agraciada pela FIFA, com o Salvador Sobral a procriar de aluguer, ou o Bramcaamp Sobral a ir miar em Fátima, ao Francisquinho, "amar pelos dois", com o Ronaldo a jogar pelo Dínamo de Kiev. Há mais combinações, como Santa Jacintinha no Eurofestival 2017, mas essas combinações fazem vocês em casa, tá?...

Quanto aos pastorinhos, há menos dois pastores na Terra e mais dois santos no Céu. Creio que isto só pode traduzir a crise profunda do setor agrícola. Prigogine já analisara o processo na teoria dos gases: na oscilação browniana, fosse o tempo demasiado longo, depois de escapados da origem, haveriam de oscilar, ao ponto de conseguirem voltar ao recipiente. Traduzido por miúdos, quem espera sempre alcança: o Francisco e a Jacinta, em Fátima, onde o Bergoglio podia aproveitar para resignar, "Franscisquinho c'est moi", mas ainda não é desta que resigna, e os analfabetos vão a santos, e até parece que vão mesmo. Aplicado o prigogine ao Sobral, que não é pastorinho, mas uma espécie de enorme hérnia da desfaçatez, nós tantas vezes perdemos o festival que haverá um dia em que nós, talvez, pois, talvez nós, pois, talvez nim...´


(Dueto em forma de valsa, à la rustica, no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")

sábado, 7 de janeiro de 2017

Soares foi fixe








Há um arranque, no Segundo Concerto, em que Beethoven desafia a Técnica pela Estética, e lança o tema do solo com uma nota tirada na tecla extrema do teclado, para mostrar que estava a desbravar ali as fronteiras e já precisava de um piano bem mais extenso. No fundo, pouco se esperou, até que Jean Henri Pape, lançasse, em 1844, o seu piano de oito oitavas. Tudo o resto foram Liszt e exercícios de bravura, e, ao falar-se de Liszt e exercícios de bravura, é inevitável que agora caiamos no tema e no homem do dia, Mário Soares, que hoje finalmente passou à eternidade.



Na verdade, o teclado dos epítetos de Mário Soares em muito se estende para lá de todas as oitavas do piano. Talvez nenhum político em Portugal tenha sido percutido com tantas das palavras do Amor e do Ódio, e isso é já uma das maiores formas de grandeza. Dizem que tinha uma forte costela de ignaro, e encolhia os ombros perante todas as provocações, o que é um modo profundamente político de ensinar a tolerância aos outros, e ensinou, pelo lado da bonomia e do bom humor. Para quem se tenha esquecido, os comunistas foram-lhe, e bem, aos cornos, na Marinha Grande, e ele nem sequer recuou, e nem sequer se encolheu, e essa foi uma das imagens que passou, e em grande, para a sua lenda.



Também corre uma certa unanimidade na fixação do seu papel na História, onde o pintam com a ambiguidade da trajetória dos icebergue, por que muito do feito ter sido invisível, e muito do que dele ficou visível talvez não passasse, afinal, de uma simples aparência de farsa, o que, no entanto, já fará parte do desbravar do futuro, no qual ele agora apenas acabou de embarcar.



Mário Soares é uma figura única do nosso paupérrimo cenário político, e um contorno incontornável dos nossos traumas culturais. Somos o país em que vingava a Segunda Escolástica, quando o Cartesianismo já invadia toda a Europa. Mais grave do que isso, foi, presentemente ainda continuarmos a achar que, no fundo, a Segunda Escolástica até era melhor, só teve "foi azar", e lá tivemos nós de papar o Cartesianismo. Esse é o mesmo Portugal que, até hoje, ainda persegue João Domingos Bontempo, só por que ele foi liberal, e por que ser liberal é um crime continuado, num país permanentemente reacionário. Mário Soares fez o mesmo, ou afim, e decidiu apontar o dedo às rançosas mazelas do nosso imaginário, pois não queria nem Igreja, nem Miguelistas, nem sucessores do Tio Caetano, e disse-o nas suas célebres três palavras, Laico, Republicano e Socialista, o que lhe trouxe uma infindável panóplia de ódios e dos afetos, embora a sua história comece muito antes, e por isso convém que se revisite este homem sobre o qual, na verdade, ainda hoje se sabe pouco.



Num essencial sobre Soares, nem sequer sei se seria interessante o Soares de antes do 25 de abril, onde foi preso, como tantos outros, mas isso sou eu, iconoclasta, a tentar enfiar uma biografia inteira pelo funil da simplificação. Soares vencia sempre, mesmo quando não ganhava. Há aqueles que adoram o Pomar, só por que que esteve na cela ao lado do Marocas, mas isso de nada serviu ao Marocas, e igualmente não conseguiu tornar o Pomar num pintor de renome mundial, por mais que muitos o empurrassem e tentassem. Para mim, também aqui basta o brilhante retrato do Bochechas da Mãozinha, uma das obras mais conseguidas da retratística presidencial, mas voltemos já ao essencial, e nem sequer vou olhar para esse Partido Socialista, fundado em 1973, na Alemanha, só o Diabo saberá, já então, posto ao serviço de quem nunca se saberá.



O Soares essencial é o de 1974, 75 e 76. Creio que a enorme unanimidade vai para as críticas sobre os procedimentos relativamente às Províncias Ultramarinas, mas creio que convém, também, fixar o guião desses tempos. O Sr. Salazar, um provinciano retrógrado, ao contrário de todas as potências europeias, com longas tradições de aculturação, exportação de procedimentos e normas imperiais, só se lembrou de começar a colonizar os seus quintais ultramarinos no momento em que a sinistra lógica mundial já tinha decidido que os iria depredar, e arrancar do marasmo lusitano, na forma de empenhados "movimentos de libertação", e nem vamos falar disso, para não nos indispormos já com os leitores. Na verdade, a "colonização" portuguesa foi uma diáspora tardia de muitas das manchas de pobreza, dos filhos segundos, e dos aventureiros que por cá pululavam, e assim puderam ir para terras extensas, para por lá fazer o que por cá não podiam, nem deviam. Na cabeça e no coração levavam, não a Fé e o Império, como muito se apregoava, mas o pior da natureza portuguesa, e até da natureza humana, com a possibilidade de fazer, com consentimento, ao "preto" de lá o que o "preto" de cá não permitia nem gostava. Quando chegou a Revolução, havia por lá uma "colonização" recente e muito postiça, e muito espalhada por toda a parte, que era um terrível estorvo para aquela comédia que se avizinhava.



Há por aí uma narrativa que igualmente põe na boca do defunto Soares a solução final, que seria "atirar com todos os colonizadores ao mar". Do Mário nada me espanta, como também não me espanta o célebre episódio de ter pisoteado a bandeira nacional, em Londres, já que na melhor nódoa cai o pano. Pessoalmente, acho que o Soares colérico seria capaz disso e até de muito mais, na primeira parte, por estar a espezinhar um símbolo que, de tão vilipendiado, se despojara do seu caráter nacional, para se transformar no triste pano bicolor de serviço de uma infindável ditadura; na segunda, por ter simplificadoramente volvido grandes massas humanas em meros agentes ao serviço de um regime que estava em agonia, e, como hoje se diz, os tinha tornado em escudos humanos de uma ideologia. Deste ponto de vista, toda a colonização salazarista não passava de uma tortuosa, cobarde e mal assumida utilização de portugueses num território de guerra aberta, no cumprimento da velha máxima, muito nacional, de, depois da casa arrombada, trancas à porta. 



É certo que estou a acompanhar a lógica do discurso, e não a lógica do que penso, já que ambos os atos e palavras do Soares seriam sempre indesculpáveis, mas eu apenas os reposicionei historicamente, e assim vamos voltar à descolonização, ou retirada apressada de nacionais, cobardemente colocados, fora de tempo e de oportunidade, num teatro de guerra, onde o desastre ou o massacre apenas estavam a ser adiados. Chegado 1975, a coisa agudizou-se, e é aqui que Soares se revela ímpar e crucial. Para os esquecidos, 1975, num mundo afundado na miséria obâmica de Jimmy Carter, correspondeu ao apogeu absoluto do espetro soviético. Um gesto mal medido, e Portugal, como a Etiópia, o Sudeste Asiático e todos os cenários de fronteira poderia ter mudado de hemisfério politico, aliás, a par com a Espanha e a Grécia.



Não sei se esta conversa teve lugar, mas Soares, tal como Churchill em Ialta, quando estava a atirar meia Europa para as trevas da Cortina de Ferro, e, subitamente, levantou o dedo e disse, "não, a Grécia... não", por que a Grécia também estava incluída no pacote das roménias, hungrias e bulgárias, para ir parar às mãos do criminoso Estaline, Soares, digo, deverá ter tido uma visão Churchill, e, homem de rasgos abrangentes, e de finíssima sensibilidade para o devir da História, deverá ter tido, por um momento, a balança dos tempos defronte dos olhos. A decisão todos a conhecem: ou a cabeça continental de um império a ficar a salvo da tormenta, com o custo de todas as suas possessões mundiais, ou agarrar-se às suas possessões mundiais, e naufragar com elas, numa qualquer decisão e destino imprevistos.



Sei que o que escrevi é horrível, mas não sei se estará tão longe da verdade quanto isso. Um cenário, muito semelhante, deverá ter vivido outro grande estadista, Ataturk, quando se tratou de salvar os estilhaços do colapso do Império Otomano. No fim, safou Istambul, e umas tiras europeias, até Andrinopla. Se também a culpa aí não foi de Ataturk, só a História dirá qual a quantidade e qualidade da culpa de Soares.



Como diria Epicteto, há os amigos de Soares e os inimigos de Soares, sendo que os primeiros só deus saberá se não foram mais nefastos do que os segundos. O homem que hoje morreu terá levado consigo os segredos das conversas com Carlucci, um pedófilo mundial, cujos apetites, in extremis, conseguiram, para Portugal, uma estranha proteção americana. Muito se discute qual o preço desse escudo, mas certamente  o seu preço foi uma hábil conquista de Soares, e creio que lhe devemos estar gratos.



O Soares, de 76, foi uma mera consequência do Soares dos dois anos anteriores. Para os de curta memória, Portugal era então um estado deprimido e vexado na comunidade internacional. Passava, semana após semana, por ridículos semelhantes aos dos que hoje se riem da ditadura cubana, ou norte coreana: um quintal anquilosado, fora do tempo, a tentar resistir a coisas sem sentido, e gerido por um bando de abutres vestidos de negro. Coube ao mal preparado Soares criar um figurino internacional, e conseguiu-o magistralmente: era um tipo de bochechas, bem humorado, que falava mal línguas, mas conhecia todos os dialetos e aldrabices internacionais. Internamente, traçou, para sempre, o perfil ideal do Presidente da República. Externamente, e aproveitando a maré das ternuras e complacências para com um estado estilhaçado por uma revolução de excessos e insuficiências, deu-lhe uma cara moderna e uma velocidade contemporâneas: dez anos depois, já tinha conseguido que fizéssemos parte do mosaico europeu, se bem que em troca da perda do mosaico ultramarino, e nem vou discutir a pertinência ou a possibilidade de outro rumo que este, já que não sou historiador, mas apenas intelectual atento.



Para quem tenha dúvidas sobre a grandeza de Soares, deveremos sempre contrapor-lhe a menoridade de Cavaco, pietista, provinciano e reacionário. Cavaco foi a continuidade de muitos dos 900 anos de costas voltadas para o progresso, que Soares, um verdadeiro social democrata, nunca representou, e todo o país ingrato se revelou, quando depois permitiu, em refluxo, que durante dez anos o Saloio de Boliqueime inenarravelmente vexasse a Presidência. Enquanto o Clã Soares multiplicava os seus golpes e negócios, por toda a parte, os amigos de Cavaco iam traçando os seus futuros perfis de vigaristas, ladrões, assassinos e homicidas involuntários, e estou a falar de Dias Loureiro, Duarte Lima, Leonor Beleza, Mira Amaral e Ferreira do Amaral, entre outros tantos. Se um apontava os golpes para o Mundo, o outro limitava-se a apontá-los para as velhas paredes do seu quintal, e o resultado disso tudo foi o presente estado de abandono e pobreza em que vegetamos e continuamos a estar.



Na verdade, se excetuarmos Pessoa, Soares foi o maior português do séc. XX, e apenas refiro esse século, por que foi nesse século que nasci e não em nenhum qualquer século outro. Morreu o Pai da Democracia Portuguesa. Depois de Soares, toda a Política será menor.



Para o fim, os últimos desafios decerto foram ainda interessantes: é já o Soares do séc. XXI que se opôs a outro espetro do ranço e do clubismo, Manuel Alegre, cuja vaidade e estupidez nos atirou para dez perversos anos do Neocavaquismo. Antepassado de "The Braganza Mothers", e causa direta da sua existência, foi "The Great Portuguese Disaster", blogue de campanha anticavaquista e assumidamente soarista. Não estou arrependido, e aqui fica a memória, no dia da partida para a Eternidade do maior estadista português do nosso tempo: quando Soares concorreu, queria evitar que os Portugueses perdessem dez anos da sua Democracia, e perderam mesmo, como veio a acontecer. Ganhou Soares e perderam os Portugueses. Ele foi previdente, os Portugueses é que não, e aqui voltamos ao início, já que este é apenas um pequeno esboço de um texto que poderia ser infinito. Como Mário Soares, nenhum político, em Portugal, rimou tanto com todas as palavras do Amor e do Ódio. De todas elas, vou agora relembrar apenas duas, essenciais, de que ele foi nosso professor, e das quais lhe teremos de ficar eternamente devedores, Liberdade e Democracia. Creio que tudo o resto foram meros trocos da Necessidade.






(Trio de grande despedida soarista, ó, Bochechas, está na hora, vai-te embora!..., no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

President Trump






Faço parte dos cidadãos do Mundo que têm observado a campanha americana com o sensor de tédio ligado ao máximo. Corrijo: faço parte dos cidadãos do Mundo cujo sensor de tédio há muito que discretamente me afastou dos desenvolvimentos da campanha presidencial americana. No outro dia, por desfastio, liguei a televisão e estava a passar uma gaja pausada, cheia de comprimidos. Rapidamente compreendi que ela se estava a candidatar contra um outro, bastante descomprimido e cheio de gajas, e que aquilo era o estado presente da coisa americana. Nada de estranhar, como nada é de estranhar, depois de Obama. Ela falava no mesmo tom com que as jeovás apocalipsam o fim próximo do Mundo, e ele no tom de quem acredita que é mesmo o Fim do Mundo, o que, da parte dele, é uma forma de imodéstia a mais.

A realidade é que no estado em que o Mundo está dá muito trabalho acabar com ele, ele, Mundo, e não Trump, e, depois de um pouco de observação, percebi que a senhora não tinha mais programa do que deixar que o Mundo não acabasse já, e o tipo, do que andar assustar a senhora com o trabalho que estava a conseguir dar a ela. Na verdade, numa termodinâmica de economias e consumos, ele gasta muito menos do que ela, já que, de cada vez que ladra, logo ela acorre a fechar todas as portas e janelas, o que é um colossal dispêndio de energia, para um simples ladrar. A coisa, ao fim de semanas, converteu-se num mero patético espetáculo de bancada, em que um apenas toureia os receios do outro, para que, por detrás do boneco da outra, logo venha uma multidão imensa compor o boneco, para se fingir que ela não está completamente borrada de medo, com o medo do boneco dele.

Acontece que, na nossa sociedade teresoaguilhermada, o boneco Trump até tem graça, e a graça do boneco Clinton é uma perfeita desgraça. E onde nada disto tem graça é que não estamos num reality-show, mas durante o processo de eleição para um dos cargos mais poderosos da Aldeia Global.

Alguns céticos comparam este processo penoso à fase catalética da Academia Sueca, e, num raciocínio de transitividade elementar, dar a Casa Branca ao Trump acaba por estar para o Donald, como o Nobel recentemente esteve para o Dylan, ou seja, o apertar de mão de duas formas muito próprias do vazio. O problema desta forma de analogias, é que, estando o Donald para o Dylan, também o Saramago teria estado para a Clinton, e isto começa a aproximar-se muito da realidade, já que radiografa a contemporaneidade americana, do mesmo modo que, ao longo dos tempos, o Nobel da Literatura nos foi revelando o relatório clínico da sua longa agonia.

Há muitos que preferiram lançar o Dylan no anedotário, mas o Dylan é uma coisa séria, aliás, ele é rosto de um estado de coisas muito sérias, tal como o Trump é a cara chapada de um certa seriedade do estado atual das coisas. Tudo o resto é axiomático, já que a morte da Literatura conveio muito bem à morte do Nobel da Literatura, depois de um processo em que o próprio Nobel procurou adiar a sua morte, aliando-se a alguns escritores, para depois se ter o inverso, com alguns escritores nado-mortos a procurarem no Nobel um impossível fôlego para a sua triste agonia, para chegarmos ao presente estado das coisas, em que este duplo velório mais não pode ser adiado.

Acontece que, como não sou pessimista, e a análise da coisa está mesmo num impasse, é importante que se lhe traga uma grelha mínima de leitura, e retomamos, ninguém duvida do estado moribundo da Literatura e do estado ainda mais moribundo do Nobel da dita cuja, e, não duvidando deste estado de coisas, era urgente que algo se fizesse, e assim se fez, atirando-se o prémio numa direção imprevista. A Academia fez o seu coming-out, e deu um salto kitsch, numa direção francamente hyppie. Mais friamente, e como caminhamos para uma Nova Idade Média, cheia de Webs Summits, onde a narrativa dos artefactos traz muito mais imaginação do que todos os milénios da Literatura -- sobretudo quando nessa literatura, como o Saramago, nenhum milénio estava guardado para qualquer poesia ou imaginação, -- a Academia resolveu atribuir o prémio a um bardo, relembrando que, nos anos da outra Idade Média, também a voz literária gravitava entre lugares da luz, só mantida pela voz dos trovadores, e aqui regressamos ao tema central, em debate nestas presidenciais, o próximo regresso à nova Idade Média.

Para os apologistas de que os políticos mais não são do que fantoches nas mãos dos interesses que os colocam lá, lanço agora o desafio de acreditarem piamente nas suas palavras, e olharem com os próprios olhos da sua perspetiva, na direção de Trump e da Senhora Clinton, já que, numa forma aguda, eles não representam mais do que o estado previsível dessa infeção. Para os seguidores de debates -- eu continuo a preferir os combates tradicionais de gladiadores --, esquecidos de que aquilo mais não é do que uma forma não muito sofisticada de entretimento, deve ter sido interessante perceber as jigajogas que estavam por detrás de um e de outro, sendo talvez a maior curiosidade destes eventos que, num puro desespero de causa, a viuvinha Clinton tenha desistido de defender qualquer ideia, e acabado a dizer que mais não era, afinal, do que o bastião final de defesa do atual estado de coisas.

Curiosamente, esse é o maior capital do Trump, uma personagem que se pensaria impossível, antes de termos assistido ao Putin, ao Barroso, ao Erdogan, ao Kim jong e a uns quantos outros que agora se instalaram pelos vários pelouros da contemporaneidade, já que, de cada vez que a outra se arroga vir, para defender todas as coisas tal qual como estão, imediatamente engrossam as fileiras dos cada vez mais prejudicados pelo establishment, e são muitos, e todos frutos das muitas facetas de tal estado insuportável de coisas. Trump é o Ronald Reagan possível de hoje.

Atrás, enganei-vos, quando vos disse que a Literatura estava morta. Não está, apenas mudou de palco, e escreve e continua a escrever, como eu acabei de fazer, e durante mil anos ela fez, rabiscando glosas e escólios na margem dos pergaminhos. Vocês caíram no erro e leram, validando a minha tese, e assim impugnando dylans, nobeles e saramagos, e assim vamos continuar. Creio que do desastre Clinton/Trump igualmente emerge uma leitura fria, que é a da agonia da Política. Depois de terça-feira, é provável que também regresse à margem dos pergaminhos, em glosas e escólios, queira lá isto dizer o que quer que seja. 


É óbvio que os perfis radicais podem ser perigosos, e, sem chegar a perorar, como certas cassandras, que é da massa dos Trumps que sempre se fizeram os hitlers, a verdade é que sempre foram as massas das clintons a permitir, no limite, que emergissem cada vez mais trumps, e eles são hoje, como se sabe, mais do que as mães. Está por comprovar que da massa das clintons emerjam quaisquer hitlers, mas não podemos dizer que dessa água não beberemos. Na verdade, as bolsas não têm hoje qualquer paciência para hitlers, e os catalisadores são-lhes indiferentes, desde que não colidam com a lógica dos mercados: quem se lhes oponha surge e evapora-se em dois dias, como os palermas do "Brexit", e este é o verdadeiro prognóstico da Era Trump, uma coisa que aí vem, independentemente do Trump. Depois de terça feira, iremos ver como é fraco o ladrar de qualquer político, perante as vozes de fundo das correntes que os mandataram, ou, mais frio do que isto, como essas correntes já podem prescindir do ladrar dos políticos para fazerem ouvir diretamente as suas vozes.



Aparentemente, tudo indica que o paradigma pós industrial está a querer mostrar, em direto, que já não precisa mais de atores públicos para se fazer representar social e politicamente, e isto é um ato profundamente político, já que terça irão eleger um balão vazio, perante uma plateia que está no mesmo estado do "À espera dos Bárbaros", do Kavafys, que nunca teve o Nobel. A isto chama-se "Era Trump", cuja maior encenação cenográfica, e preparação, tem sido, com bastante sucesso, o Daesh dos subúrbios.



O final deste texto é técnico. O sistema eleitoral americano -- que, no fundo, irá aproveitar esta oportunidade para mostrar que, contrariando tudo o que escrevi atrás, felizmente está vivo, mas na peculiar maneira -- assenta numa sólida topologia de alternância. A grande lógica do seu modelo matemático é uma invariância global dos ciclos de sístole/diástase, o que, trazido para a linguagem política, fala de uma estabilidade do modelo de sucessão entre períodos democratas e períodos republicanos. Por outras palavras, é o ciclo de alternância que é imutável, e são apenas os seus protagonistas que vão variando, assegurando sempre o mesmo programa eleitoral, petróleo, fabrico de armas e status quo. Os eleitores limitam-se a validar vagamente um xadrez de colégios eleitorais, e a isto se chama por lá democracia. A última demonstração da frieza deste sistema revelou-se quando Bush, a quem tinha sido incumbida a Missão Nine Eleven, teve mesmo de vencer Al Gore, independentemente da contagem local dos votos. Se é certo que este mesmo modelo revela algumas exceções, elas estão sempre associadas a períodos fortemente atípicos, que é o que aqui nos interessa, já que esta eleição, em novembro de 2016, apenas nos vai dar o sinal de estarmos perante um ciclo de estagnação, ou de necessitarmos mesmo de uma emergência de rotura, capaz de inverter a lógica do ciclo. Deste modo, creio que nos devemos serenamente concentrar em apenas três questões: "processa-se esta eleição num período de tal modo crítico que o ciclo de alternância se veja coagido a alterar-se momentaneamente?"; "É a Senadora Clinton de tal modo extraordinária que permita uma extensão anómala do ciclo democrata?" e "É Donald Trump realmente tão mau que mereça destruir a própria lógica profunda da alternância?".

Se respondeu uma vez "sim" a pelo menos uma destas questões, eu, e todos nós, já ficamos imediatamente a saber onde o meu caro leito iria votar. Pela minha parte, e sem querer ser pessimista, prefiro continuar a responder "não" às três questões, sendo certo que também não voto, nem quereria, num cenário destes. Certo é que todos nós, na próxima terça feira, nos iremos espantar com mais uma irónica solução da História.

Lá estaremos para ver, companheiros :-)




Quarteto da Era Trump, no adormecido "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e no "The Braganza Mothers"