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sábado, 13 de maio de 2017

Fátima, Futebol e Festivais





Sou daqueles cujas crenças ficaram pelos mistérios de Abidos e Elêusis. Considero que tudo o que veio a seguir foi relativamente menor, embora me comovam algumas palavras do profeta Cristo, as práticas do Buda tardio, quando o Rumi se espanta com permanecermos na jaula, quando a porta há muito foi aberta, ou com o Pascal a olhar para as estrelas de uma certa forma. Creio que o lugar das coisas religiosas é uma parte notável da natureza humana, tal como a crendice é o quintal das traseiras da natureza da hominização.

Depois disto, creio que não se espantarão que venha falar de Fátima e dos outros dois "éfes", e pois é que venho mesmo. O cristianismo, na sua fase tardia, fundamentalista e desacelerada, aproxima-se muito das posições canónicas de Hegel, e quer tratar rápida e definitivamente, das arrumações que faltam para o fim da História. Creio que já escrevi algures que o princípio destes problemas até tinha um rosto e um tempo, embora as exéquias já o tenham apartado de nós. Mais coisa, menos coisa, Woytila, um mineiro obstinado, encarregou-se de minar o cânone religioso, ao ponto de os tetos desabarem sobre os fojos escavados em baixo, e lá deixarem soterrada meia humanidade. O processo é conhecido, e só falta fixá-lo em texto, já que a distância ditada pela História nos começa a dar liberdade de datar.

Woytila, tal como Benedito XVI, Ratzinger, foi um dos flagelos das crenças, ao ter introduzido uma miserável antipedra filosofal que transformou tudo o que fosse religião em crendice. Há quem o compare à metodologia chinesa de fabricar em massa, e sem qualidade. Na realidade, quando entendeu que, depois de milénios de equilíbrio, o Cristianismo devia, finalmente, avançar para a globalização, independentemente das fronteiras dos outros, o podia fazer como calhasse. Os resultados são sabidos: por cada viagem que fez às fronteiras exóticas, o islamismo radical respondeu com estados párias, mecas da violência e ISIL sem barreiras. Quando se pergunta qual a origem do chamado fundamentalismo, é bom que nos lembremos de que foi santificado com o nome de João Paulo II. Mefisto é, decerto, um dos seus maiores adoradores, et pour cause.

O problema destas coisas é como o das mulheres de aluguer, que o tempo acabará por tornar sérias: passadas umas quantas décadas, o próprio problema perde a pertinência, e já ninguém se recorda dos tempos antes. Com Woytila assim foi, e a memória eclipsou os tempos em que o cristianismo era uma religião e não uma crendice de rastejar por Fátima, como hoje se tornou. Como rosto da globalização, era necessário fazer chegar a muitos mais o mesmo produto, ainda que degradado. Na verdade, esse franchising dos credos era fácil de engolir, rapidamente digerível, e não deixava rasto, para além dos magnetes pardos de colar no frigorífico, com a fuça da jacintinha. A massificação do religioso, tal como os megaconcertos, rege-se apenas por uma miserável emergência da simplificação.

Penso que os piedosos não devem ser obrigados a acompanhar o processo, mas, infelizmente, a sua agonia assemelha-se muito ao destino do comércio tradicional, perante a vertigem do fast food. Creio que desenvolver isto seria moroso, e vamos já passar a Fátima: o lindo serviço que Bergoglio, o bispo de Roma, veio hoje fazer à Cova da Iria é uma vergonha, e altamente prejudicial para o que resta das nossas poucas coisas culturais. Diz que para passar às coisas notáveis da Religião já não é necessário passar pelas provações mentais de Agostinho ou Aquino, mas basta aparecer pastorinho, analfabeto e vitimado pela pneumónica. Como a coisa faz jurisprudência, amanhã venderá bem e poderá ser traduzido na forma simples dos recuerdos.

O segundo flagelo nacional é o Futebol, ao qual voltaremos num outro tempo. Chegam-nos hoje as suas metamorfoses, a primeira, a que transformou a necessidade global de futebol numa simplificação de trazer por casa, a necessidade de Cristiano Ronaldo. Durante anos, sentia-se, nos telejornais, a angústia de ter de passar pelas banalidades das notícias importantes para, finamente, se poder trazer ao espectador o manjar da coisa desejada, o monótono perorar do esférico. Com o tempo, a coisa refinou, e sentia-se, com angústia, ter de papar o futebol, quando na verdade, o que se queria era falar de cristiano ronaldo. Fosse Freud vivo e a coisa se explicaria, mas, com ele morto, ainda se explica melhor.

Na verdade, há muito de Fátima em Ronaldo, e basta pensar naquela que concebeu filho sem pai, para rapidamente acabar naquele que gosta de conceber filhos sem mãe.

Por rapidez, vamos à terceira epifânia, a do Salvador Sobral, um fenómeno meteorológico muito parecido com o célebre Zé Maria, da Teresa Guilherme. Há uma certa tonicidade no badalhoco, e um enorme faz de conta do simplório. Distingue o primeiro do segundo ter sido o primeiro um campónio, sem eira nem beira, e o segundo um produto altamente elaborado dos mecanismos de intoxicação social, como se pode ver, e ainda mais se verá. O que me choca no Sobral não é a música, uma bela balada digna de bons filmes de Woody Allen, mas alheia a um lugar cultural com timbre nacional. Faz muito lembrar Al Bowley, mas um Al Bowlly, do "Midnight, The Stars And You", e em mau. O pior da coisa é o incesto, ou uma certa veia incestuosa, indizível, mas vociferante. No final da coisa, depois de tocado o teclado do coitadinho, até podia morrer na véspera da apoteose festivaleira, para realmente poder ir cantar por ele a irmã madrasta e madrinha, do final da fábula. Como podem imaginar, tudo isto me toca muito pouco, exceto na sua conjunção, que é verdadeiramente diabólica, e assenta num patamar ainda abaixo: o Futebol, depois de se degradar em Ronaldo, ameaça voltar a degradar-se ainda mais, ao regressar ao Futebol, e o Futebol ao Marquês de Pombal.

Globalização, globalização, era mesmo o Cristiano Ronaldo ir à Ucrânia receber a bota de ouro, e a Lúcia ser agraciada pela FIFA, com o Salvador Sobral a procriar de aluguer, ou o Bramcaamp Sobral a ir miar em Fátima, ao Francisquinho, "amar pelos dois", com o Ronaldo a jogar pelo Dínamo de Kiev. Há mais combinações, como Santa Jacintinha no Eurofestival 2017, mas essas combinações fazem vocês em casa, tá?...

Quanto aos pastorinhos, há menos dois pastores na Terra e mais dois santos no Céu. Creio que isto só pode traduzir a crise profunda do setor agrícola. Prigogine já analisara o processo na teoria dos gases: na oscilação browniana, fosse o tempo demasiado longo, depois de escapados da origem, haveriam de oscilar, ao ponto de conseguirem voltar ao recipiente. Traduzido por miúdos, quem espera sempre alcança: o Francisco e a Jacinta, em Fátima, onde o Bergoglio podia aproveitar para resignar, "Franscisquinho c'est moi", mas ainda não é desta que resigna, e os analfabetos vão a santos, e até parece que vão mesmo. Aplicado o prigogine ao Sobral, que não é pastorinho, mas uma espécie de enorme hérnia da desfaçatez, nós tantas vezes perdemos o festival que haverá um dia em que nós, talvez, pois, talvez nós, pois, talvez nim...´


(Dueto em forma de valsa, à la rustica, no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")

sábado, 2 de abril de 2016

Daesh in the sky with diamonds





Dedicado ao soldado Alex Pushin, que nos devolveu as primeiras flores de Palmyra




Agora que o filme está a chegar ao fim, o Obamismo nada conseguiu produzir, exceto Donald Trump. É justo, por que a eleição de Obama sempre teve um programa de marasmo previsto, e Trump é uma forma de marasmo como qualquer outra, talvez com a diferença de que mais vale um Donald Trump do que o Obamismo ter parido coisa alguma, e arriscava-se agora a chegar ao fim, deixando-nos de mãos completamente vazias.

Semelhante ao Obamismo, só a deriva, rezam os livros de História, de Jimmy Carter, fraca figura, que, na segunda metade dos anos 70, deixou o Mundo à beira de cair nas mãos do Império Soviético: nunca Moscovo chegou tão longe, com a conquista da Indochina, a queda do Negus da Abissínia, uns grupelhos vermelhos a incendiarem a Península Ibérica (então, uma "geringonça" monopartidária, para quem se lembre...), uma Grécia à beira do soviete, uns acidentes pelas Caraíbas e o Afeganistão, finalmente, onde os porcos pós estalinistas se afundaram em miséria, como todos os invasores se tinham afundado, bem antes deles. Pior do que isto, só os solavancos maoístas e os gritos de perfeição do gueto albanês. Naquele tempo, se aquilo não era o fim, então, o que seria o fim, mas mais iria haver para ver.

Graças à Apple que a versão presente é mais iPhónica, e o preto americano é uma loa bem diferente da coisa sinistra que foi Ronald Reagan. Como diria Aristóteles, a velhice está para a juventude, tal como o crepúsculo está para a manhã, e assim estará Trump para Obama, como Reagan esteve para Carter. No final disto tudo, também há, e sempre houve, um títere Putin, com esse ou outro nome. Há quem lhe chame analogia, mas eu prefiro acreditar que é bem a voz de Spengler a falar da bela Decadência do Ocidente.

O Ocidente escolheu decair de formas diversas, e algumas delas inesperadas. Roma, quando soçobrou, transformou-se num subúrbio; o Ocidente preferiu acabar numa epopeia de suburbanos, gente gira, na ótica da Teresa Guilherme, gente fatal, na ótica dos poucos, que, como eu, estamos a viver a coisa na sua inevitável literalidade.

É inevitável que voltemos a Bilderberg e ao seu programa de "normalização" pela base. Com Bilderberg, apenas tenho um ponto de contacto e uma única coincidência, a de que o Mundo está superpovoado, e superpovoado por representantes da espécie cada vez mais desinteressantes e perigosos. Infelizmente, as religiões, que se apresentam sempre como tão sábias, foram sistematicamente incapazes de girar a chave do problema, através da enunciação de um simples "não procriarás"... De aqui deriva, embora não se ouse estabelecer a conexão, que a tão falada inevitabilidade de uma geração inteira a ir ter de viver pior do que geração que a antecedeu não é mais do que uma resposta dos programadores dos figurinos do Mundo a esta cultura do enxame multiplicado num mundo despovoado de recursos. Os sensores estão todos em sintonia, e há uma lógica do senso comum que realmente conflui numa conclusão inevitável, a de que a desenfreada multiplicação da espécie humana, uma das espécies mais tóxicas do planeta, é incompatível com uma igualdade de posse dos meios. Por outras palavras, chegamos à axiomática de que já não chegaria uma Terra inteira para produzir os bens do fascínio das grandes ilusões destas massas todas.

Mais interessante do que tal evidência é se terem tornado esquivos os corolários do anterior, já que, se as coisas não chegam para todos, então, a quem chegarão, e a resposta é extraordinária, posto que se não rege por um princípio do mais apto, mas pela lógica de Bilderberg, em que sobreviverão os piores, ou para dar rostos às coisas, sobreviverão os protagonistas e finalistas dos reality shows da, e vou repetir, Teresa Guilherme.

Como já deverão ter percebido, a Teresa Guilherme é aqui completamente irrelevante, já que ela não passa de uma espécie de Wally de todas as teresas guilhermes deste mundo. Ela não é mais do que um bodisatva de um budismo perverso e imprudente, que prega o desprezo por todas a regras do mundo e um salve-se quem puder assente nas volatilidades de um corpo com uma semivida de vinte anos, e dois ou três orgasmos falhados no chuveiro. Na realidade, esta insuficiência na posse plena de todos os recursos do planeta é espantosamente resolvida numa oval forma colombiana, do já que eles não podem ter tudo, e não podem desconfiar de que tudo já não é possível que esteja na posse de todos, então dêem-lhes o onírico às postas, simplesmente, invertendo a lógica do indispensável.

Esta gente foi filha de uma gente para quem a educação, o emprego, os cuidados de saúde, o estado social, as reformas e a estabilidade na velhice eram os pilares maiores de uma aventura da finitude. A grande aposta dos sabotadores do Mundo foi diminuir-lhes a esperança de vida, acenando com as glórias do êxito fácil, e os quinze minutos de fama do Wahrol, os quais foram esticados durante meses, a baixo custo, piores expectativas, e plena intoxicação da TVI: só tatuam os braços do cotovelo até às mãos aqueles que sabem que isso vai contra uma política de certos empregos e castas, e essa mimese é própria daqueles que subliminarmente já estão a ser preparados para a exclusão. Também a saúde não é importante, por que as doenças são problemas da velhice, e a velhice é um horizonte quimérico, uma coisa de que falam os avós, avós que nós nunca seremos, mas dos quais tanto continuamos a depender, durante os curtos anos da nossa sobrevivência.

Curiosamente, e por um princípio de entropia, este empobrecimento em massa repercutiu-se a montante, afetando a geração anterior, forçada a sustentar esta massa enorme de desempregados, de desapossados do teto próprio, e nos quais é sistematicamente necessário injetar os capitais que permitem os sinais efémeros de sobrevivência: a representação social das roupas, dos eventos musicais, das discotecas, e da troca, segundo a moda, dos tablets e smartphones, e a droga, necessária à permanente anestesia. É um interminável narcisismo, afundado no vazio, na virtualidade e no combustível das substâncias. Vales e és o tamanho do teu Facebook. Tudo o resto se tornou irrelevante, e não integra a cultura da deseducação. Desde que os pais paguem, os filhos podem concentrar-se na posse dos poucos objetos que os validam na vacuidade contemporânea. Na verdade, nós não quereremos imaginar o que vão ser os filhos destes filhos, criados no caos e na precariedade, mas acreditamos que já virão dotados de um princípio de amnésia, que os fará esquecer de que as coisas nem sempre foram assim. No final disto tudo, estará uma guerra, entre os que ainda têm e os que nunca tiveram, entre os que ainda se lembram e os que já não guardam memória, e, sobretudo, entre aqueles que vivem do não esquecimento e os que sabem que o registo da memória é um incidente letal. A violência começa no estádio, e estende-se até Palmyra. E é aqui que chegamos ao ponto essencial deste texto, já que nós viemos aqui para falar de guerra.

Sendo a História perigosa para estes sistemas, é fundamental que regridamos no tempo, e regressemos à memória, ou seja, ao ponto em que, historicamente, este cenário foi manipulado, para chegar à desagregação que preparava. Não voltaremos a falar das derivas neoliberais, por que são já do senso comum, mas importa recordar que esse é o big bang do colapso presente, ditado pela irracionalidade do salve-se quem puder, mesmo que, no final, ninguém se chegue a salvar. Esse é um dos cenários de Bilderberg, ditados pela lógica do extermínio, e nós vamos alegremente nessa direção.

O princípio do empobrecimento global, que entre nós teve muitos rostos, gera imparidades crescentes, já que a lógica do pântano não é sincrónica com o afundamento de todas as camadas da sociedade. O subúrbio da exclusão, com o seu princípio de reconquista dos centros abandonados, é uma das maiores glórias desta nova idade média: começou-se por caçar os picas e acaba-se a decapitar no teatro de Palmyra.

A falácia seguinte assenta na representação, e nos valores visuais da representação, já que a lógica do subúrbio tem heráldica, uniforme e ritos: ninguém, melhor do que o neoliberalismo, importou para os cânones do visual os estigmas do novo nomadismo: as mochilinhas, os capuchinhos, os óculos escuros, as barbas a despropósito, e a mais recente estética dos pés em forma de martelinhos de cordas de pianoforte, a emergirem na ponta das calcinhas lycradas e apertadas. De aqui aos fundamentalismos das madrassas de Kandhaar e de Fahti é um passo, e este cortejo dos falhados do Ocidente, que invadiram as nossas ruas e praças, nada mais é do que um generalizado cavalo de tróia do nosso colapso civilizacional. Só se espantarão os incautos de que os servos do aeroporto de Zaventem tenham celebrado os atentados de Paris. Toda a superpopulação gera violência. Faltava-lhes ainda o enquadramento religioso, e nisso os bilderbergers falharam, já que não bastou a "geringonça" de dois papas fundamentalistas e um totó para subverter séculos de aggiornamento e laicização. Porquanto todo o empenhamento fanático e a cruzada antierótica de Woytila e Ratzinger não foram suficientes para fazer o Ocidente empolgado atravessar o limiar da jihad. Esse teria sido o cenário de guerra ideal, em que um Ocidente fundamentalizado se apropriasse dos recursos das civilizações vizinhas. Mas, como a guerra era indispensável, foi necessário, encontrar um casulo mais radical, que, impossibilitado de se encostar aos fanatismos sionistas, encontrou bom porto nas derivas ortodoxas do Islão. O Islão não é senão uma segunda escolha de cenário, falhada a tentativa do fundamentalismo cristão. Para aqueles que dizem que o Daesh é um subproduto das políticas de relaxe do capitalismo selvagem tem de se fazer o reparo de que esta gangrenosa infiltração dos tecidos sociais por elementos estranhos e radioativos é, pelo contrário, fruto dos laxismos das culturas da integração e da mestiçagem, os piores flagelos das sociedades rendidas às "geringonças", que, no limite das suas necessidades de defesa, acordam nas formas estranhas dos donalds trumps destes mundos.

Esta é uma guerra que não assenta na posse de territórios, mas na uniformização do pensamento. O seu fim final é o colapso da Democracia e o fim da herança ateniense. Brevemente, que é o hoje já, todos teremos integrado os argumentos das correntes extremistas e totalitárias como postulados elementares das nossas mesas de café. Ao nosso lado, todos os que se sentarem e não partilharem do nosso pensamento estarão ao alcance da rapidez de autos de fé tecnológicos e literais, perpetrados pelos novos escravos do precário e dos 500 €, e imediatamente publicitados no Twitter e no Instagram.

Foi esta cultura nómada da mochilinha obsessiva que nos tornou invisível o bombista suicida do metro de Lisboa. Foi esta cara tapada pelos óculos, pela barba e pelo capuchinho, que tornou o nosso vizinho do lado vizinho do militante do Daesh, encarregado de se vir fazer explodir nas rotundas do Colombo e nos saldos do El Corte Inglês. É o puro triunfo da estupidez, replicado e assistido por milhões, nas cenários da ninfómana, Teresa Guilherme, que marca a irrelevância da educação, e que permite que se tenham dinamitado os templos de Palmyra, tal como se dinamitaram os Budas afegãos. Brevemente, não haverá livros, mas apenas estádios de futebol. Sabemos que o Sr. Balsemão, como muitos, gosta disto e aplaude. Talvez goste menos, quando chegar a vez de ser a sua cabeça decapitada a decorar a capa de alguma edição extraordinária do "Expresso"...



(Quarteto da esplendorosa Tadmor-Palmyra, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")



terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O Daesh, enquanto selfie da Decadência do Ocidente








Dedicado a José António Saraiva, pela proeza de conseguir manter, durante décadas, espaços de expressão plural, em pleno Fundamentalismo Lusitano



Tal como 1914, 2015, o Ano da Luz, ficará marcado pelo regresso da Guerra. O móbil é simples, e vai como uma epígrafe oscarwildeana, a de apenas darmos valor a boa reputação, só depois de a ter perdido. Só este seria um bom epitáfio para a paz na Europa, e já poderíamos seguir adiante, embora nada indique que esta guerra seja marcado por qualquer possibilidade de ir adiante, pois que, como previsto por Sun Tzu, ela estará a ser diferente, substancialmente diferente e demasiado inesperada, pois esta é a Guerra dos cavalos de tróia menos convencionais.

Na genealogia dos desastres, todas estas coisas radicam sempre muito atrás, como já as deixava adivinhar "O Ovo da Serpente", de Bergman, mas Bergman era tão só Bergman, e nós, algures mais ao lado, teríamos de nos contentar com situar a coisa um pouco depois, na década do desastre dos famigerados Anos 80. Os Anos 80, que passaram para a História como o tempo em que o Cristianismo, com balofas aspirações à universalidade, se tornou numa religião fundamentalista, na forma de uma crendice difusa. Socialmente, os valores do egoísmo marcaram o declínio do Iluminismo, e como nada disto poderia ser vivenciado por um corpo saudável, toda a década passou a padecer de uma generalizada imunodeficiência adquirida. Na altura não se percebeu, mas tínhamos acabado de mergulhar numa nova idade média.

Os protagonistas deste fracasso civilizacional, como repetidas vezes invocados, tem nomes, papéis, e lugares de decisão tragicamente bem definidos, por que esta voragem provocou milhões de mortos e a difusão generalizada da miséria. Do macro para o micro, também nós tivemos a versão caseira deste declínio, e um arrastado protagonismo de figuras politicamente miseráveis, cujo consulado, como é o caso de Cavaco Silva, agora atingem o triste ocaso.

Este período gerou legiões de suburbanos, que, um dia, resolveram marchar contra as cidades e os núcleos fragilizados da Civilização.

Se precisavam de ideias, bastaram duas ou três coisas chãs, ruminadas nas madrassas dos quatro cantos do Mundo. Pois, quando as religiões já se julgavam confinadas aos templos e ao ceticismo, João Paulo II, um piores dos rostos do crime do séc. XX, inventou o patamar da crendice, e voltou a arrastá-las pelos cabelos, para o meio do palco. Também Roma, na transição para o declínio, tinha processado as coisas assim, com o intelectualismo pagão a ser brutalmente substituído por uma religião de trazer pela rua, que entregou a civilização à barbárie. Portanto, até aqui, nada de novo, se excetuarmos ter havido, pelo meio, uma longa deriva da História. Mas esta é  História, traçada, a Ocidente, pelos três papas fundamentalistas, Woytila, Ratzinger e Bergoglio. A Oriente, a coisa não foi talhada de modo menos brando, e, no mesmo hiato temporal, vimos deslizar ayatolahs, talibans, alqaedistas e daeshistas.

Se, na euforia hippie, se perguntasse qual ia ser o lugar das crendices religiosas, quarenta anos depois, ninguém poderia adivinhar que a resposta seria triádica: será sufocante, global e decisiva.

O irónico desta guerra, vivenciada na indecência dos epígonos, Obama, Bergoglio e Merkel, é que se desenrola em duas diferentes frentes de batalha, e ainda numa terceira, que, de tão difusa, não tem frente. As duas primeiras não coincidem, embora os adversários em campo sejam os mesmos, e a coroa de glória desta guerra dos suburbanos seja ter conseguido que os dois exércitos estejam permanentemente de costas voltadas, a provocar estragos, e a nunca alcançarem vencer-se: enquanto nós insistimos em ir para a Síria soltar bombas, as verdadeiras trincheiras estão na retaguarda, nos subúrbios de todas as nossas grandes cidades.

O Daesh é um reflexo inesperado de todas as coisas que passamos décadas a varrer para debaixo da cama. O Daesh é uma imprevista selfie da mais naturalista Decadência do Ocidente.

Não é previsível o tempo de duração deste conflito, já que não se trata verdadeiramente de uma guerra, mas de uma implacável operação de extermínio: quanto mais demorarmos a percebê-lo, e a afinar a estratégia da nossa intervenção, mais o mal se disseminará. As vozes vão-se multiplicando, e são consonantes, esta invenção do Fundamentalismo teve raízes muito prosaicas, e lugares muito precisos, que convém circunscrever e intervencionar, essa Arábia Saudita, um estado islâmico inventado pelos Ingleses, há quase 100 anos.

Mais uma vez, este texto é circunstancial, e evita a grande reflexão, cujo tempo ainda não chegou. Todos os dias, essa ideologia do Daesh encontra lugar entre nós, na cobardia, na marginalidade e nos ditames do extermínio. Politicamente, as vitórias vão-se multiplicando, já que nesta guerra das selfies, vamos aproximando, pelos votos, as nossas "decisões" políticas das previsões sufocantes do Fundamentalismo, e não adianta virar as costas, pois esse modus faciendi já impera por toda a parte, e já está tragicamente instalado, um dia, degolando repórteres de guerra em Palmira; outro, bem perto de nós, como agora aconteceu, decapitando mais de cem jornalistas, nos jornais "Sol" e "i".


(Quarteto à beira do ocaso, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" em em "The Braganza Mothers")

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie: je suis plutôt citoyen du Monde





imagem do "Hebdo Charlie" e em memória dos seus espíritos livres, chacinados pela intemporal intolerância humana



Não se começa um ano por dizer que vamos entrar em guerra, pelo que serei mais generoso: em 2015, nós continuamos numa guerra, cujo início me é difícil precisar. Curiosamente, essa guerra até nem tem nada de novo, nem de extraordinário, é só mais uma guerra, mais uma vez, assente naquele pretexto, sem sentido, de que os povos, inspirados pelo Livro, sentem de chacinar e atormentar todos os outros que não creem no Livro, ou, mais acutilantemente ainda, que acham que o Livro não é o mesmo e sempre o mesmo causador de todos os seus conflitos.

Simplificando as palavras, repito o que ecoa por todos os lados: nunca a praga das religiões provocou tantos mortos como a das guerras inspiradas por essa coisa asquerosa, que tanto tem rosto como não tem, e cujo nome oscila entre Yahvé e Alá, passando pelo Padre Eterno das barbas feias e mal cheirosas. Creio que, a haver Deus, nunca Ele se identificaria com nenhum dos focinhos de suíno dos três nomes anteriores.

Para mim, intelectual, artista, filósofo, livre pensador, ecuménico, no sentido em que sou sensível a todas as grandiosas conquistas que todos os credos do Tempo trouxeram à amenização e solidificação dos laços maiores das relações humanas, é repugnante entrar assim, no ano de 2015, com sombras, odores e bafos de eras que deviam estar definitivamente definitivamente enterradas, mas já lá estou, ou melhor, já lá estamos, todos nós.

Só para os incautos, o sucedido em França agora espanta, ou, sendo mais preciso, só incautos se espantam que tenha sido a França da França a apanhar com este primeiro impacto do que aí vem, mas a cegueira humana tem como definição ser-se cego, do princípio ao fim. A França está, tão só, a colher o que semeou, e isso dava outro tratado, que não o de um texto de luto severo, contra o acontecido

Quanto ao princípio da coisa, nasce daquelas curiosidades etnológicas e ressentimentos históricos de poeira mal assente, em que um certo Ocidente, carregado de culpas, ainda se sente culpado das culpas praticadas num certo Oriente, que, por extensão, criou uma espécie de neurose cultural, em que achamos que deveremos passar o resto da História a penar pelos atos localizados de alguns, nalguns momentos da mesma. O fim, menos evidente, e sem fim à vista, passa por coisas como as presenciadas por essa mesma França, de Voltaire e Sade, cujo bicentenário da morte passou despercebido, por um povo de imbecis, entretidos com a "estátua" de um cretino. O fim do fim, o pior ainda, só agora está a começar e vai passar por coisas bastantes complexas, que obviamente extravasam este texto. Tanto quanto me lembro, esse clímax, ou armagedão, já vem a ser anunciado por obras da década de 70 do milénio passado, como "O Ovo da Serpente", de Bergman, que, creio, urge reverem, por ser cruamente premonitório. A vê-las iremos ver, quando delas for tempo. 

O caso "Charlie Hebdo", agora vivido com a emoção superficial do "viralismo" das voláteis redes sociais já se esqueceu de muitos e muitos intermezzi, por não lhes serem convenientes, ou por que a memória lhes é curta, ou estúpida. Os mesmos que agora clamam contra os pretensos "fundamentalistas islâmicos" -- criados nos muitos cavaquistões suburbanos do neo liberalismo, e que, sinceramente, espero não serem, como Bin Laden, mais um dos subprodutos do esgoto cinematográfico de Hollywood, ou daquelas coligações impensáveis entre os serviços secretos do Ocidente, que só servem para nos lançar na histeria e na impotência da análise fria -- já se esqueceram dos mesmos fundamentalismos de revolta, contra caricaturas, como as do miserável assassino, João Paulo II, o patriarca da SIDA, com a célebre camisinha espetada no focinho, ou das massas em fúria, diante dos cinemas, contra a estreia de filmes da vida daquela Maria, que tinha posto os cornos ao José, para emprenhar o Profeta Jesus, só o Diabo saberá filho de quem. A gasolina devia estar em alta, na época, senão, também tinham incendiado a Cinemateca...

A crua verdade é que, no nosso tempo, são tão ridículos os corvos de trancinha, que batem com os cornos contra o Muro das Lamentações, como aquelas imensas ondas de trapo, viradas, de cu para o ar, para a Meca dos idolátricos meteoritos, ou os miseráveis rastejantes de Fátima, que acham que o solzinho é um Aluno de Apolo, capaz de dançar. O solzinho, realmente, não dança, e nada vejo nisso de religiosidade, mas apenas meras oscilações de consequentes futuros problemas de Ortopedia, que nós pagaremos, com o interminável espremer dos nossos impostos.

Estas coisas não têm solução, senão uma: no séc. XXI, as Religiões não passam, e não podem, e não devem, passar, de um patético aspeto arqueológico das sociedades. Devem, assim, ser confinadas aos seus museus, que são os templos, e apenas visitadas por quem goste do tema, ou se interesse por tais antologias. Qualquer extravasamento sobre as ruas, os lares, ou as consciências, deverão ser imediatamente entendidas, pela inerente coação e devassa da vida privada, como puras violações da liberdade cívica, e imediatamente encaradas, e tratadas, como simples problemas de saúde pública.

Não podemos viver eternamente reféns de um deus cadáver.

Ou se vai a Marte, ou se vai a Fátima.

Pela minha parte, vou a Marte e mando Fátima, todas as fátimas do mundo, para o caralho.

Convido, pois, a que me sigam, todos aqueles que se revirem nas minhas palavras.

Boa noite.


(Quarteto das belas brisas das boas crenças humanas, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")