segunda-feira, 20 de abril de 2015

Fábula do Boi de Boliqueime e da sua triste rã generalizada







Imagem devastadoramente atual de Rafael Bordalo Pinheiro




Os fins de época são como as mortes súbitas: quando dão, já é demasiado tarde para se fazerem anunciar. A diferença é que, no caso português, a infiltração foi tão prolongada e a umidade tão extensiva que se torna hoje quase impossível distinguir parede e dano. Portugal é hoje um enorme dano, com algumas pausas para se tentar convencer de que qualquer normalidade porventura ainda fosse possível.

Começaram por ser algumas, mas, finalmente se começaram a acumular, as vozes que associam a doença nacional ao nome de Aníbal Cavaco Silva. Tenho nisso a honra de já ter passado para a História como quem, há dez anos atrás, resumiu, numa  simples sucessão de imagens, a imagem que Cavaco deixará para a História. Bem se poderão esforçar aqueles que o quiserem enfileirar ao lado dos retratos da República, que o único, o melhor, o retrato absoluto de si mesmo já foi grafado pelo próprio para a prateleira dos Anais. Não foi com  óleo, foi com fotografia, e saiu-se demasiado bem. Às vezes a História é irónica, mas, como todos sabemos, sempre triunfa aquele instante em que se descobre que o rei realmente ia nu.

Neste pântano político, Cavaco conseguiu ir nu durante 10 anos de maiorias absolutas, e mais uns 10 outros, de agonia neurológica. Se me não falham as aritméticas, 10 mais 10 faz 20, e vinte é, mais coisa menos coisa, metade do tempo em que Salazar manteve Portugal como uma coisa estagnada da Meseta Ibérica. Se somarmos a metade de Cavaco com o dobro de Salazar, ficamos, mais a soluçar uns quantos Caetanos e Eanes, com quase 80 anos de paralisia política. Ora, 80 anos em 100 é muito ano, ou muita paralisia, ou muita estupidez inveterada, o que se torna idiossincrático e incontornável.

Para algumas correntes, nas quais me incluo, Cavaco Silva constituiu a quinta essência da gangrena do Regime Português. Cavaco está para a Democracia como Manoel de Oliveira esteve para o Cinema, ou, aristotelicamente, sendo que duas coisas não podem simultaneamente ocupar o mesmo lugar, na verdade, não pudemos ter nem Democracia e muito menos Cinema: antes nos contentamos com ficar a vomitar cavacos e oliveiras, enquanto o Mundo, estarrecido, não deixava de rodar.

A situação poderia não ser grave, e estava agora mesmo a olhar para um fragmento de mastaba de Neferikaré Pepi II, que está exatamente atrás de mim, e a pensar em como o mais longo reinado da História involuntariamente conseguiu que o Império Antigo depois caísse numa confusão política, que levou os longos anos que sabemos para se restaurar numa nova ordem reconhecível. As longevidades, exceto na genialidade, são geralmente nocivas para a essência das sociedades, mas, para além da crise local, nós estamos igualmente a atravessar uma gravíssima crise cultural em que a palavra regeneração parece ter-se tornado obsoleta. A verdade é que como morreu Oliveira, Cavaco também está prestes para sair, e a doença de Balsemão, como a de Borges, é uma das nossas mais profundas esperanças, sendo que o étimo da palavra "esperança" é, realmente, o de... "esperar".

No nosso grave, e pantanoso, bellum sine bello, pensamos que, como num sonho de bela adormecida, o Tempo passaria incólume sobre este período, e voltaríamos, como passados por entre os pingos de chuva, a emergir, incólumes e intactos, para prosseguir na nossa fábula. A verdade não se quis assim, e, como após um longo período de acamamento, estamos agora, incrédulos, a descobrir que perdemos completamente a tonicidade dos músculos e a própria capacidade de andar.

Os sintomas estão aí, e confundem-se com a típica Síndrome do Fim da História: Maria Luís Albuquerque, a atual loura sebosa das Finanças, a traçar planos de previsão para um futuro governo, e quem sabe se não o está mesmo a fazer com alguma sabedoria, dado o estado de degradação da matilha que enturmou com António Costa. No final deste período decadente, até seria possível que Albuquerque sucedesse a Albuquerque, entre os rangeres de dentes e espumejares da raiva galambiana. Talvez gostassem de saber a minha opinião, e eu ponho-a já aqui: adoraria que, simultaneamente, toda esta gente perdesse as Eleições e adoraria que António Costa nunca as ganhasse, pelo que, pela sua própria natureza quântica, me é totalmente indiferente o que venha a suceder: um povo que, após Salazar, apadrinha Cavaco tem exatamente tudo aquilo que merece, e eu remeto-me ao meu papel nefelibata, e vou muito acima das nuvens, completamente embrenhado nas minhas coisas, entre as quais o maravilhoso calcáreo da gazela de Neferikaré Pepi II, e, progressivamente, insensível aos epifenómenos rançosos da nossa contemporaneidade. Lamento imenso, mas em tempo de crise, reservo-me o direito de invocar a minha condição de intelectual, e de rumar diretamente para a História. Os culpados do resto que se amanhem, e se comam uns aos outros.

De algum modo, todo o anterior é apenas introdutório para o que tenho para vos dizer e que é breve. Com o país no impossível estado de faz-de-conta em que se encontra, subitamente, as televisões e os jornais, que os balsemões deste mundo conseguiram que deixassem de ser fábricas de sonhos para se tornarem em permanentes fábricas de pesadelos, despejaram-nos em cima uma multidão de fantoches inacreditáveis, todos eles com o carimbo de "candidato a", e completa-se a frase... "candidato a Presidente da República". Sei que o raciocínio é platónico, e talvez esteja ferido de ingenuidade, nesta idade de generalizado teresaguilhermismo em que mergulhamos, mas continuo a acreditar que Presidente da República é um cargo com matizes e qualidades às quais, mas isto sou eu, que tenho uma matriz consular e romana, só se poderia aspirar em condições muito específicas e refinadas. No raciocínio patrício, o Presidente deveria incarnar um senador dos senadores, mas o problema, a doença portuguesa, é que Cavaco Silva, para além de ter degradado a Democracia, igualmente degradou o cargo presidencial. Ao fazê-lo subrepticiamente descer de nível tornou-o acessível a outros tantos iguais ou piores do que ele mesmo.

A Comunicação Social se encarregará de fazer o resto, numa espécie de chamadas de valor acrescentado que veio substituir a anterior validação dos sufrágios nacionais.

Os nomes já vocês os conhecem de sobra, e não vou repeti-los aqui, por que um nome muitas vezes repetido é uma forma de propaganda, nesta época de opacidade e cegueira crítica. Antes digamos que a qualidade da Democracia, mais uma vez, se encontra irremediavelmente afetada por fenómenos locais de vazio e vaidade, oscilando entre o patético, o piedoso e o auto complacente, os chamados manueis-alegrismos, ou, na senda continuada dos atentados à sua transparência, as sociedades secretas se engalfinham, para tentar alçar ao poleiro decaído os fracos nomes dos seus aspirantes. Na verdade, bem podem engalfinhar-se, por que o efeito se tornou verdadeiramente perverso, e, talvez numa estreia da nossa história recente, todos os candidatos são apenas candidatos aos últimos lugares, deixando a estupefação de não existir um único que tivesse pretensões a ganhar. Isto, creio, é inovador, e é uma dramática sequela do Cavaquismo, já que a Presidência da República deixou de ser um lugar cimeiro para se ter transformado num recanto de arrecadação, onde qualquer um pode sonhar arrumar o que bem entender.

Como poderão acenar-me, este discurso é precoce, e há sempre aquele concomitante sebastianismo de que, na hora verídica, alguma coisa se levantará. Quem sabe se não virá uma figura impoluta e de Estado, como o Carrilho, encarrilhar a situação?... Pela minha parte, volto a reiterá-lo, o tema tornou-se, tal como o das Legislativas, totalmente irrelevante. A minha questão é apenas a de, uma vez afundado, pelo seu coveiro, um Regime, que lugar terá a Imaginação para encontrar o que o possa vir a substituir?...



(Quarteto da linda, linda, Nódoa, que grande que é esta nódoa, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")

quarta-feira, 8 de abril de 2015