sábado, 13 de maio de 2017

Fátima, Futebol e Festivais





Sou daqueles cujas crenças ficaram pelos mistérios de Abidos e Elêusis. Considero que tudo o que veio a seguir foi relativamente menor, embora me comovam algumas palavras do profeta Cristo, as práticas do Buda tardio, quando o Rumi se espanta com permanecermos na jaula, quando a porta há muito foi aberta, ou com o Pascal a olhar para as estrelas de uma certa forma. Creio que o lugar das coisas religiosas é uma parte notável da natureza humana, tal como a crendice é o quintal das traseiras da natureza da hominização.

Depois disto, creio que não se espantarão que venha falar de Fátima e dos outros dois "éfes", e pois é que venho mesmo. O cristianismo, na sua fase tardia, fundamentalista e desacelerada, aproxima-se muito das posições canónicas de Hegel, e quer tratar rápida e definitivamente, das arrumações que faltam para o fim da História. Creio que já escrevi algures que o princípio destes problemas até tinha um rosto e um tempo, embora as exéquias já o tenham apartado de nós. Mais coisa, menos coisa, Woytila, um mineiro obstinado, encarregou-se de minar o cânone religioso, ao ponto de os tetos desabarem sobre os fojos escavados em baixo, e lá deixarem soterrada meia humanidade. O processo é conhecido, e só falta fixá-lo em texto, já que a distância ditada pela História nos começa a dar liberdade de datar.

Woytila, tal como Benedito XVI, Ratzinger, foi um dos flagelos das crenças, ao ter introduzido uma miserável antipedra filosofal que transformou tudo o que fosse religião em crendice. Há quem o compare à metodologia chinesa de fabricar em massa, e sem qualidade. Na realidade, quando entendeu que, depois de milénios de equilíbrio, o Cristianismo devia, finalmente, avançar para a globalização, independentemente das fronteiras dos outros, o podia fazer como calhasse. Os resultados são sabidos: por cada viagem que fez às fronteiras exóticas, o islamismo radical respondeu com estados párias, mecas da violência e ISIL sem barreiras. Quando se pergunta qual a origem do chamado fundamentalismo, é bom que nos lembremos de que foi santificado com o nome de João Paulo II. Mefisto é, decerto, um dos seus maiores adoradores, et pour cause.

O problema destas coisas é como o das mulheres de aluguer, que o tempo acabará por tornar sérias: passadas umas quantas décadas, o próprio problema perde a pertinência, e já ninguém se recorda dos tempos antes. Com Woytila assim foi, e a memória eclipsou os tempos em que o cristianismo era uma religião e não uma crendice de rastejar por Fátima, como hoje se tornou. Como rosto da globalização, era necessário fazer chegar a muitos mais o mesmo produto, ainda que degradado. Na verdade, esse franchising dos credos era fácil de engolir, rapidamente digerível, e não deixava rasto, para além dos magnetes pardos de colar no frigorífico, com a fuça da jacintinha. A massificação do religioso, tal como os megaconcertos, rege-se apenas por uma miserável emergência da simplificação.

Penso que os piedosos não devem ser obrigados a acompanhar o processo, mas, infelizmente, a sua agonia assemelha-se muito ao destino do comércio tradicional, perante a vertigem do fast food. Creio que desenvolver isto seria moroso, e vamos já passar a Fátima: o lindo serviço que Bergoglio, o bispo de Roma, veio hoje fazer à Cova da Iria é uma vergonha, e altamente prejudicial para o que resta das nossas poucas coisas culturais. Diz que para passar às coisas notáveis da Religião já não é necessário passar pelas provações mentais de Agostinho ou Aquino, mas basta aparecer pastorinho, analfabeto e vitimado pela pneumónica. Como a coisa faz jurisprudência, amanhã venderá bem e poderá ser traduzido na forma simples dos recuerdos.

O segundo flagelo nacional é o Futebol, ao qual voltaremos num outro tempo. Chegam-nos hoje as suas metamorfoses, a primeira, a que transformou a necessidade global de futebol numa simplificação de trazer por casa, a necessidade de Cristiano Ronaldo. Durante anos, sentia-se, nos telejornais, a angústia de ter de passar pelas banalidades das notícias importantes para, finamente, se poder trazer ao espectador o manjar da coisa desejada, o monótono perorar do esférico. Com o tempo, a coisa refinou, e sentia-se, com angústia, ter de papar o futebol, quando na verdade, o que se queria era falar de cristiano ronaldo. Fosse Freud vivo e a coisa se explicaria, mas, com ele morto, ainda se explica melhor.

Na verdade, há muito de Fátima em Ronaldo, e basta pensar naquela que concebeu filho sem pai, para rapidamente acabar naquele que gosta de conceber filhos sem mãe.

Por rapidez, vamos à terceira epifânia, a do Salvador Sobral, um fenómeno meteorológico muito parecido com o célebre Zé Maria, da Teresa Guilherme. Há uma certa tonicidade no badalhoco, e um enorme faz de conta do simplório. Distingue o primeiro do segundo ter sido o primeiro um campónio, sem eira nem beira, e o segundo um produto altamente elaborado dos mecanismos de intoxicação social, como se pode ver, e ainda mais se verá. O que me choca no Sobral não é a música, uma bela balada digna de bons filmes de Woody Allen, mas alheia a um lugar cultural com timbre nacional. Faz muito lembrar Al Bowley, mas um Al Bowlly, do "Midnight, The Stars And You", e em mau. O pior da coisa é o incesto, ou uma certa veia incestuosa, indizível, mas vociferante. No final da coisa, depois de tocado o teclado do coitadinho, até podia morrer na véspera da apoteose festivaleira, para realmente poder ir cantar por ele a irmã madrasta e madrinha, do final da fábula. Como podem imaginar, tudo isto me toca muito pouco, exceto na sua conjunção, que é verdadeiramente diabólica, e assenta num patamar ainda abaixo: o Futebol, depois de se degradar em Ronaldo, ameaça voltar a degradar-se ainda mais, ao regressar ao Futebol, e o Futebol ao Marquês de Pombal.

Globalização, globalização, era mesmo o Cristiano Ronaldo ir à Ucrânia receber a bota de ouro, e a Lúcia ser agraciada pela FIFA, com o Salvador Sobral a procriar de aluguer, ou o Bramcaamp Sobral a ir miar em Fátima, ao Francisquinho, "amar pelos dois", com o Ronaldo a jogar pelo Dínamo de Kiev. Há mais combinações, como Santa Jacintinha no Eurofestival 2017, mas essas combinações fazem vocês em casa, tá?...

Quanto aos pastorinhos, há menos dois pastores na Terra e mais dois santos no Céu. Creio que isto só pode traduzir a crise profunda do setor agrícola. Prigogine já analisara o processo na teoria dos gases: na oscilação browniana, fosse o tempo demasiado longo, depois de escapados da origem, haveriam de oscilar, ao ponto de conseguirem voltar ao recipiente. Traduzido por miúdos, quem espera sempre alcança: o Francisco e a Jacinta, em Fátima, onde o Bergoglio podia aproveitar para resignar, "Franscisquinho c'est moi", mas ainda não é desta que resigna, e os analfabetos vão a santos, e até parece que vão mesmo. Aplicado o prigogine ao Sobral, que não é pastorinho, mas uma espécie de enorme hérnia da desfaçatez, nós tantas vezes perdemos o festival que haverá um dia em que nós, talvez, pois, talvez nós, pois, talvez nim...´


(Dueto em forma de valsa, à la rustica, no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")