segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Fábula dos filhos do Embaixador do Kebab






Já o disse várias vezes, e volto a repetir, perde-se demasiado tempo a combater gajos dopados nos desertos da Síria, quando mais valia que se começasse a caça ao dopado nos muitos subúrbios do Ocidente. É certo que é sempre mais fácil andar a bombardear o horizonte da aridez do que invadir apartamentos HLM, a Quinta do Mocho ou os arredores de Dusseldorf, mas essa poupança vai-nos sair demasiado caro, aliás, o vai-nos, situado num futuro próximo, é um erro de expressão, já que este estado de coisas se tornou inerente aos próprios tempos presentes.

Eu sei que é muito complicado para a Dona Arminda, de Baguim do Monte, ter de começar a acreditar que o seu filho, um puro produto de subúrbio, ainda sem o verniz postiço da Teresa Guilherme, de cada vez que lhe desampara a loja, e vai sair, para a "night" de Baguim do Monte, é como se fosse, com os amigos, treinar para as traseiras do quintal, as táticas do cinto bomba, do extermina assim e do mata e esfola como se nada fosse. Um dia houve em que ainda estava ela a ver as novelas da TVI e o gajo tinha acabado de limpar, com uma soqueira, um dos do bando da frente, a pretexto de uma disputa de uma recém menstruada. Foi na Domingos Baião, mas podia ter sido na Calçada de São Coitado à Lama, ou nos Champs Elysées, mesmo aqui ao lado. Depois, se a coisa se desenvolver como se pensa, ele pedirá desculpa, e depois de ter emigrado para os arredores, voltará a matar a 2000 quilómetros de casa. A versão dois é mais ou menos igual à versão um, só que em pacote: agarrou em veneno dos cães, e matou três gajas, duas delas das que já andavam engalfinhadas, e a terceira por que estava a tomar o gosto à coisa, e também ia embarcar no roço e começar,em Tires, a engalfinhar-se também. O homem é macho, e não pode permitir uma coisa dessas, rezou para a Meca dele, matou as sapatonas e toca a andar. A versão três é mais ou menos mais do mesmo: eram seis da manhã e o bacano teve fome, pôs-se na esquina, com aquelas saias de xadrez baratas que eles usam, por cima das calcinhas apertadas, a esconder o raquitismo e a falta de banho, e fez um voo rasante em cima do cota, era turco, só serve para o damo comer, depois de  o damo comer, mata-se. Deu-lhe com os ténis, e ficou com um bruto bife de kebab rasgado no focinho. A quarta, que me levou a escrever este texto, é mais sofisticada, por que mete os próprios filhos do embaixador do kebab anterior, e aqui o discurso muda de registo, posto que, se os campos de treino do Daesh são todos iguais, ainda é mais verdade que há uns mais iguais do que os outros, e eu passo já a explicar.

Na ascensão da insignificância, que silenciosamente levou a que cultura urbana fosse substituída pela cultura surburbana, num silencioso, mas imparável, deslizar, que passou por anas malhoas, marizas e cristianos ronaldos, os valores das coisas foram calmamente substituídos pelos valores de outras coisas, menores e insidiosas. Quando acordamos, já eles e elas estavam instalados. Fala-se de uma democratização, mas a democratização é um mau, péssimo, nome para um abandalhamento, na direção dos piores valores proletários. Os defensores de que o socialismo fabiano anunciava o advento do Neomaoismo, com uns comunisticamente muito ricos, no topo, e os outros, completamente acartuchados e acinzentados, muito no baixo, mas felizes, de mocilha às costas e smartphone nas unhas, convencidos de que andar na EasyJet é turismo, e que Lisboa se vê em três dias, dois dos quais na forma de noites de b'jecas e mijadela, de pé, contra a esquina, ou agachada atrás dos latões de metal, para depois acabar a atafulhar o metro, no meio de malões baratos e gajos de rastas, a precisar de uma boa mangueirada, dizia eu,
de
que,
os defensores deste espécie de alegria dos valores baratos, e do politicamente correto, sempre dominados por aquela voragem do Fim da História, arriscam-se agora a acabar com a própria História. O próprio motor e dinâmica das sociedades está indissoluvelmente ligado às clivagens e às diferenças de potencial, sendo certo de que uma cultura onde a entropia está no máximo já é uma cultura das águas caldas, que é o mesmo que dizer que está morta. Ora, uma cultura que está morta, precisa de se auto estimular, de modo a que a sensação das águas mornas não seja sufocante. De aí ao homicídio por que sim, e ao esmurrar até matar, por desfastio, vai um ligeiro passo, e já o demos.

Nas sequelas da podridão nacional, com o nome local de Cavaquismo e Neocavaquismo, foi moda sair da sarjeta e imediatamente colocar nas unhas das crias carro, com ou sem carta, e barraca no subúrbio, não falando, claro está, do casamento homogéneo e simplificado, com a oxigenada de coxa de pele de laranja. Este foi só um grau de entropia de arranque, e logo se esqueceram os avós do candeeiro de petróleo e das noites passadas com as cabras. Como nunca se deve servir nem a quem pediu nem a quem serviu, este estado de coisas criou uma primeira geração de quistos sociais, movidos pela ambição do ter, sem nunca ter chegado a ser, ou ter de saber. Chegada a crise, tudo isto mergulhou no cano, mas por colossais assimetrias, já que a sociedade diabólica do neoliberalismo estava definitivamente instalada. A métrica era simples, e fácil de assimilar: como isto não chega para todos, é fundamental que eu faça parte dos que têm, e que se lixem os que não, ou nada, têm. A segunda palavra é ainda mais simples: se puder ter, então, que tenha ainda mais, não venha o Diabo vir e tecê-las. O resultado disto tudo, em crescentes guerras e guerrilhas de bairro, conduziu às franjas do poder afastado e às terríveis bainhas do enormemente excluídos. Nestas bainhas teve origem o Daesh, subproduto do fundamentalismo cristão, com os adereços e apetrechos de um falso falar corânico. Os seus melhores campos de treino estão na guerra ao pica, nos aceleras da ponte, nas salas do insucesso escolar e nas drogas e rixas de discoteca.

Na verdade, esta métrica da posse, ditada pela impossibilidade, custa muito caro, e devora todos os recursos. São hoje falados os casos dos pais que são agredidos, e dos outros que se empenham e contraem empréstimos insolúveis, para que os filhos possam ter o necessário para participar na dinâmica da "night", já que, se não andares na "night" não existes, e, se lá andares, acabarás a existir ainda menos. Esta é a terra dos cristianos ronaldos, do oco e do vazio, e do extremamente caro do nível das representações.

Quem não tem estoura, e quem se cansou, ou não tem o que estoirar, põe um cinto bomba e começa a estoirar com os outros.

Claro que tudo o que escrevi atrás é mentira, e, se não for mentira, é demasiado simplificador. Na realidade, a corrente subterrânea, imediatamente sucedida ao atrás descrito, é uma coisa ainda pior, posto que, acabada a lógica do sucesso pela cultura, pelo trabalho e pela construção do eu, substituído pelo acaso, pelo errante e pela ditadura do Ego, os valores foram ainda mais subvertidos. Pelo que consta, os pais da geração de atrás já não se contentam com dar cartas de condução, mas começaram agora a pagar aulas de aviação aos nascituros. A coisa pegou, e desenvolveu mais uma daqueles subterrâneos à portuguesa, fazendo de Ponte de Sor (isso é onde?...) uma terra, não de campónios, mas de estrangeiros, a pingar fortunas. E, se tiverem menos de 18 anos, tanto melhor, já que não podem conduzir carros, mas então que pilotem aviões, o que até é normal, no país do "Pilinhas" e do quanto mais novinho melhor...

Faço aqui uma pausa, já que este é o novo mundo dos novos monstros. Eu Sou de um tempo em que em Cannes e Saint-Tropez uma geração de ouro esbanjava dinheiro, antes de embarcar nos iates mediterrânicos. Creio que então se refugiavam por detrás de grandes nomes e das fortunas dos papás. Um pouco mais de uma década, ou duas, esta subversão das escadas da ascensão, com o medíocre a ser platinado muito precocemente, lançou ao zénite a fina flor da escória, no meio de tumultos e invejas, para não falar dos muitos gemidos de impotência: estes novos milionários, perpetuamente adolescentes, com imunidades diplomáticas e outras armas nunca de antes imaginadas, criaram o futuro Mundo das Hienas, e estão-se a entredevorar, devorando-nos a nós também com eles. Brevemente os barulhos dos aceleras vão ser substituídos pelos estrondos das avionetas que caem, por que conduzidas sem brevet, ou só por vingança. No limite, o papá paga, e, se não pagar, o bacano vem à TVI, pedír desculpa.

O reverso, ou as consequências disto tudo, é que a apropriação destes meios, cada vez mais custosos e inacessíveis, leva a que a multidão dos que nada têm se multiplique. Desenganem-se os novos marx da cabidela, que aqui vêem a tempestade perfeita da insurreição: não haverá  quaisquer revoluções, mas apenas atos continuados de extermínio, de bandos de cintos bomba, a fazerem-se explodir no meio daqueles que têm a versão mais atualizada do smartphone, o meu reino por um tablet, e o matei-o, por que ele não me fez like. No campo das relações de trabalho e do tecido económico, as coisas não são melhores: a pirâmide dos empregos far-se-á em função dos que ali estão apenas para dar serventia ao pessoal das discotecas, os empregados do restaurante de antes da "night" e o turco do kebab que tem de estar ali a servir o preto longo das noites quentes das seis da manhâ. Não conseguiu comer a dama, e tem agora de se alimentar, e, se o cota não nos serve, a gente esfola o cota. Nós, pagadores de impostos, temos doravante de saber que estamos a alimentar esta enorme e crescente corrente do ócio, onde os subsidiados do nada fazem, mas muito têm, conseguiram transformar todas os dias de trabalho dos outros na sua maratona prolongada de permanentes noites de fim de semana, com toda a comunidade a apenas existir como seu pano de fundo, e fonte de subvenção do mais absoluto nihilismo social. Na outra extremidade da Cova da Moura, os filhos do embaixador do kebab agarraram no segurança e foram desfazer a cara dos frequentadores do "Koppos Bar", de Ponte de Sor, onde se baixam as calças, se faz picanha com os pés, e só há hematomas desfigurantes, com os carros, carros, carros...

Passamos agora dos carros para os aviões, sem aviso, e, dentro de cinco anos, lá estaremos nos foguetões. Numa velha rábula da Humanidade, haverá então os que têm e os que nada têm, e os que nada têm serão cada vez mais, e os que têm cada vez mais arrogantes e liquidadores. No fim, todos eles acabarão no terreno a exterminar-se uns aos outros, grande lição do Daesh para a História. Quanto a nós, pois, nós estaremos pelo meio, para cairmos, um a um, um após outro,  do primeiro até ao último, mercê do seu fogo cruzado.




(Quarteto do kebab, no "Arrebenta-SOL" (desativado), no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers", sempre soberbo e implacável)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

O Daesh como lugar psicanalítico e fisiológico da decadência do Ocidente









Num tempo em que me não lembro bem de quando, nem onde, nem por quê, os órgãos de intoxicação social adotaram a mais errada das denominações para um recente grupo terrorista: começaram a chamar-lhe "Estado Islâmico", quando o seu verdadeiro nome era "Daesh", e não se encontrava sequer na Síria, ou no Iraque, mas um pouco por toda a parte, onde disséssemos Ocidente e Oriente, e nem sequer era uma invenção recente, mas antes uma longa construção da complacência e cumplicidade do Socialismo Fabiano com a destruição da Cultura Ocidental.

Há uma teoria da fisiopsicologia que diz que enlouqueceríamos, se fossemos forçados a dar todas as ordens necessárias ao funcionamento de todos os mecanismos automáticos do corpo. É algures, no bolbo raquidiano, que, entre outros, os processos autónomos da respiração e do bater do coração se desencadeiam. Que seria daquele organismo que tivesse de pensar, antes das sístoles e diástoles, ou de dar um  milhão de ordens para encher o peito?... Na realidade, todo este automatismo foi importado para toda a sociedade, e muitas das rotinas da nossa existência estão hoje ligadas ao seu automatismo próprio. Como já por vezes se disse, nas sociedades desenvolvidas atuais, qualquer indivíduo médio poderia seguir do nascimento à morte, apenas cumprindo regras e rotinas, sem sequer ter chegado aos lugares da Filosofia ou do divino.

Este acostumamento das coisas tem, na Natureza, um outro nome, já que pode ser aproximado, por analogia, da mimese, e a mimese é o poder de umas coisas passarem desapercebidas por outras, por mero efeito de infiltração e disfarce. O Daesh, camada sociológicas das sociedades ocidentais, estudou e pratica este princípio de mimese e de automatismo das nossas defesas e atenções. E ele não o faz de agora, fá-lo de há muito, sendo talvez o seu efeito mais espetacular o atentado às Twin Towers, onde nada deixaria prever que a imagem quotidiana do avião que cruza os céus ora anunciasse um terrível míssil contra um centro financeiro mundial. A suspeita caiu sobre os comboios, o metro, e todos os transportes. O Daesh tornou-nos todos os objetos familiares em inimigos potenciais. Tudo o resto são réplicas posteriores, as sociedade dos nómadas de ginásio e computador, dos turistas cegos, de fim de semana, em qualquer lugar barato da EasyJet, sempre com a perpétua mochila, onde o Daesh já infiltrou os seus sacos explosivos; os festivais de multidões alucinadas, de óculos escuros, por detrás dos quais o Daesh escondeu os seus últimos guerreiros suicidas; os idiotas de barba fardada, todos lançados nos concursos da ninfómana Teresa Guilherme, todos iguais, e todos ávidos de exibir sinais de virilidade compensadores da sua desvirilização física e mental, infindáveis multidões de burka maxilar, como se tivessem uma bota invertida calçada no queixo, e todos iguais àquele fundamentalista que se irá fazer explodir junto da Torre de Belém de Lisboa.

Por que, um a um, através das suas células adormecidas, o Daesh já infiltrou os hábitos, lugares e rotinas do Ocidente, tudo aquilo que fazemos sem pensar e todas as coisas que preenchem a normalidade da nossa escolha cultural, ou, por outra perspetiva, tudo aquilo que o Daesh odeia em nós, e jurou um dia exterminar. Na verdade, nós não poderemos viver a desconfiar de cada uma das coisas de que gostamos, nem passar a pensar em cada passo dado, com receio de que ele possa ser uma nova ratoeira do inimigo. O Daesh não é de hoje, é de há um tempo arcaico, e foi tendo várias faces, ao longo da História. Na nossa idade mediática, nós limitamo-nos a oferecer-lhe o próprio brinde de nem se ter de deslocar, para avaliar a eficácia do seu último atentado: a vertigem dos idiotas das "selfies", dos exibicionistas do "Facebook" e dos alucinados autistas do Twitter encarregou-se de o fazer, em tempo real, e de passar ao inimigo o máximo de informação por ele desejado. Este lado psicanalítico, em que o exibicionismo de uma sociedade malsã se cruza com o agrado voyeur dos assassinos é a verdadeira boda de sangue com os criminosos do Daesh.

É agosto, verão, e as próximas vagas de atentados estarão aí. Não sabemos se as sociedades continuam sem perceber que estão em risco final, e que o futuro breve pode ser uma multidão filhos da puta do calibre de Putin, Erdogan e Trump, a marcarem o Final dos Tempos. E até é provável que continuem sem perceber, ou que alguém, nelas, comece a ter de finalmente acordar. É verão, e é agosto, e são férias. Talvez seja tempo de perceber que estamos em guerra, e que um pouco de disciplina porventura fizesse bem, como treino de proteção das sociedades urbanas. Talvez vá chocar, mas que interessa, o enorme charme destes textos é exatamente a sua permanente capacidade de chocar. Poderíamos, assim, começar por impor uma disciplina de cara rapada, a todos os idiotas que visualmente se tornaram profetas de pacotilhas das cidades do ocidente. Seria uma mera prudência dos tempos de guerra, uma simples higiene contra o inimigo, uma lição de alerta e diferença, e um simples treino doméstico contra os infiltrados. Caras rapadas, e ordem de identificar, em cada esquina, quem não cumprisse este rapar obrigatório, uma medida breve, rápida e concisa, para dar a ver ao inimigo que assim lhe retirávamos, sem pudor, a forte arma da mimese.

Não iria hoje mais longe: podíamos aplicar esta medida, já, nos festivais de verão, em todos os lugares em que o Daesh, psicanaliticamente, não nos forçou a cancelá-los. E podíamos começar a rapar já queixos, por onde os víssemos e a respirar de alívio, da tarefa feita, e, porventura, a rezar (podem ser orações laicas, coisa de que o Ocidente bem, e tanto precisa, de ambos os lados da cortina...) e a rezar para o Daesh não se nos tivesse já adiantado, e acabássemos a rapar os queixos ensanguentados de mais um massacre no metro de Berlim.

Boas férias, leitores.




(Quarteto da mimese da morte, no "Arrebenta-SOL" (em pausa), no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")