terça-feira, 8 de dezembro de 2015

O Daesh, enquanto selfie da Decadência do Ocidente








Dedicado a José António Saraiva, pela proeza de conseguir manter, durante décadas, espaços de expressão plural, em pleno Fundamentalismo Lusitano



Tal como 1914, 2015, o Ano da Luz, ficará marcado pelo regresso da Guerra. O móbil é simples, e vai como uma epígrafe oscarwildeana, a de apenas darmos valor a boa reputação, só depois de a ter perdido. Só este seria um bom epitáfio para a paz na Europa, e já poderíamos seguir adiante, embora nada indique que esta guerra seja marcado por qualquer possibilidade de ir adiante, pois que, como previsto por Sun Tzu, ela estará a ser diferente, substancialmente diferente e demasiado inesperada, pois esta é a Guerra dos cavalos de tróia menos convencionais.

Na genealogia dos desastres, todas estas coisas radicam sempre muito atrás, como já as deixava adivinhar "O Ovo da Serpente", de Bergman, mas Bergman era tão só Bergman, e nós, algures mais ao lado, teríamos de nos contentar com situar a coisa um pouco depois, na década do desastre dos famigerados Anos 80. Os Anos 80, que passaram para a História como o tempo em que o Cristianismo, com balofas aspirações à universalidade, se tornou numa religião fundamentalista, na forma de uma crendice difusa. Socialmente, os valores do egoísmo marcaram o declínio do Iluminismo, e como nada disto poderia ser vivenciado por um corpo saudável, toda a década passou a padecer de uma generalizada imunodeficiência adquirida. Na altura não se percebeu, mas tínhamos acabado de mergulhar numa nova idade média.

Os protagonistas deste fracasso civilizacional, como repetidas vezes invocados, tem nomes, papéis, e lugares de decisão tragicamente bem definidos, por que esta voragem provocou milhões de mortos e a difusão generalizada da miséria. Do macro para o micro, também nós tivemos a versão caseira deste declínio, e um arrastado protagonismo de figuras politicamente miseráveis, cujo consulado, como é o caso de Cavaco Silva, agora atingem o triste ocaso.

Este período gerou legiões de suburbanos, que, um dia, resolveram marchar contra as cidades e os núcleos fragilizados da Civilização.

Se precisavam de ideias, bastaram duas ou três coisas chãs, ruminadas nas madrassas dos quatro cantos do Mundo. Pois, quando as religiões já se julgavam confinadas aos templos e ao ceticismo, João Paulo II, um piores dos rostos do crime do séc. XX, inventou o patamar da crendice, e voltou a arrastá-las pelos cabelos, para o meio do palco. Também Roma, na transição para o declínio, tinha processado as coisas assim, com o intelectualismo pagão a ser brutalmente substituído por uma religião de trazer pela rua, que entregou a civilização à barbárie. Portanto, até aqui, nada de novo, se excetuarmos ter havido, pelo meio, uma longa deriva da História. Mas esta é  História, traçada, a Ocidente, pelos três papas fundamentalistas, Woytila, Ratzinger e Bergoglio. A Oriente, a coisa não foi talhada de modo menos brando, e, no mesmo hiato temporal, vimos deslizar ayatolahs, talibans, alqaedistas e daeshistas.

Se, na euforia hippie, se perguntasse qual ia ser o lugar das crendices religiosas, quarenta anos depois, ninguém poderia adivinhar que a resposta seria triádica: será sufocante, global e decisiva.

O irónico desta guerra, vivenciada na indecência dos epígonos, Obama, Bergoglio e Merkel, é que se desenrola em duas diferentes frentes de batalha, e ainda numa terceira, que, de tão difusa, não tem frente. As duas primeiras não coincidem, embora os adversários em campo sejam os mesmos, e a coroa de glória desta guerra dos suburbanos seja ter conseguido que os dois exércitos estejam permanentemente de costas voltadas, a provocar estragos, e a nunca alcançarem vencer-se: enquanto nós insistimos em ir para a Síria soltar bombas, as verdadeiras trincheiras estão na retaguarda, nos subúrbios de todas as nossas grandes cidades.

O Daesh é um reflexo inesperado de todas as coisas que passamos décadas a varrer para debaixo da cama. O Daesh é uma imprevista selfie da mais naturalista Decadência do Ocidente.

Não é previsível o tempo de duração deste conflito, já que não se trata verdadeiramente de uma guerra, mas de uma implacável operação de extermínio: quanto mais demorarmos a percebê-lo, e a afinar a estratégia da nossa intervenção, mais o mal se disseminará. As vozes vão-se multiplicando, e são consonantes, esta invenção do Fundamentalismo teve raízes muito prosaicas, e lugares muito precisos, que convém circunscrever e intervencionar, essa Arábia Saudita, um estado islâmico inventado pelos Ingleses, há quase 100 anos.

Mais uma vez, este texto é circunstancial, e evita a grande reflexão, cujo tempo ainda não chegou. Todos os dias, essa ideologia do Daesh encontra lugar entre nós, na cobardia, na marginalidade e nos ditames do extermínio. Politicamente, as vitórias vão-se multiplicando, já que nesta guerra das selfies, vamos aproximando, pelos votos, as nossas "decisões" políticas das previsões sufocantes do Fundamentalismo, e não adianta virar as costas, pois esse modus faciendi já impera por toda a parte, e já está tragicamente instalado, um dia, degolando repórteres de guerra em Palmira; outro, bem perto de nós, como agora aconteceu, decapitando mais de cem jornalistas, nos jornais "Sol" e "i".


(Quarteto à beira do ocaso, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" em em "The Braganza Mothers")

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