segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Setembro de 2015: entre bárbaros e breiviks, a Europa, em guerra, vai syrizando os seus estertores






Imagem do Kaos




Setembro descobriu uma Europa totalmente pavlovizada. A Europa pavlovizada, que, afinal, não é uma descoberta de setembro, mas um estado endémico, no qual as estruturas anquilosadas salivam com dinheiro, sempre que soa a sineta do risco. Aparentemente, num mundo balofo, onde os grandes sobressaltos não passavam, em França e Bélgica, de manifestações de desperdício da batata e do tomate, onde logo uma gaja, com ar de tábua de engomar, passava um cheque, daqueles acabados em "liões", e a coisa imediatamente transitava para o orçamento seguinte.
Todavia, pela própria essência dos processos pavlovianos, todas as longas sessões de salivação ganham autonomia, e quando os sistemas, como o europeu, entram na sua fase barroca, a salivação torna-se automática e carece de estímulo.


Sendo a saliva metafórica, a verdade é que responder aos "migrantes" com cifrões é equivalente à rábula da Maria Antonieta Joana Joesefa com os brioches: mais tarde ou mais cedo, um curto circuito lógico acabará por guilhotinar a coisa, e a fome estender-se-á a ambos os campos, e começa aqui a dissecação.

No primeiro tomo, há uma guerra, e todas as guerras acarretam destruição, colapso dos nichos quotidianos dos povos, e desestabilização das vizinhanças. Quando a Europa aceitou mais uma das benesses obamianas -- esse gajo passou dois mandatos a fazer só merda... -- as "primaveras" árabes, estava, na verdade, a aplaudir a queda dos ditadores árabes, que mantinham um manto diáfano de repressão sobre as águas de uma insuportabilidade profunda. O resultado foi o que se viu, e um brutal emergir da realidade.

No segundo tomo, há uma Europa que detesta essa mesma realidade e a prefere sucessivamente substituir por diretivas comunitárias e verbas de manutenção pantanal dos sistemas. Essa mesma Europa preferiu ver em Obama o tal messias preto, sem perceber que o Obama não só não era preto, como não era messias, e muito menos vinha para nos salvar. Foi a primeira vez que um americano recebeu um mandato expresso para destruir a Europa, e o Continente adorou, pediu mais, e adaptou a sua ruína à marcha salvífica em que acreditava. A estupidez não tem fim.

No terceiro tomo, há redes mundiais de todas as coisas e das coisas todas misturadas, já não organizada por pés descalços, mas por consulesas francesas, cavalheiros das mafias e do Futebol, e os culpados do costume, com os senhores das armas à cabeça. Todos tinham lido Homero, e perceberam que o cavalo de tróia já não era de pau, mas de traumas ideológicos. De aí a porem ovos de cuco em tudo o que era a moralidade vigente, foi um passo.

O quarto tomo chama-se ignorância, e remete, enquanto causa e causalidade, para o terceiro, sendo que a ignorância, hoje em dia, é uma coisa difusa, com manifestações confusas. Passa, no que a nós interessa, por uma certa crença em que a cultura do hamburguer, e isso é verdade, se sobrepõe a muitas das clivagens tradicionais. O jornalista, um dos rostos canónicos da ignorância, pouco viajado, ou muito viajado e muito cego-- nunca fui lá e nunca vi, ou até fui lá mas nada vi -- esqueceu, completamente, as diferenças de trato entre o homem da rua do aculturamento cristão e o cidadão da medina islâmica. Entre um mundo de preços fixos, e um jogo de disputa de valores, entre lágrimas, lamentos e um empolamento dramatizado dos atos de transação, que tanto faz o encanto dos viajantes desses mundos, o gajo de serviço das câmaras preferiu a colagem à literalidade, e transpõe o discurso dos deslocados em massa para um testemunho típico da primeira pessoa. A coisa está toda estudada nas "Mil e uma Noites", mas crê-se fazer parte da ignorância que essa designação, desde Galland e da sua tradução, dedicada à Marquise de O, dama da corte da Senhora de Borgonha, respeite a uma magnífica coletânea de relatos, ao gosto persa, e não a mais uma merda cinematográfica homónima. De aqui deriva que tudo o que o deslocado encena para as câmaras deva ser tomado à letra. Muito choram as crianças "migradas" (esta também é certeira para os fundamentalistas) ...

O quinto tomo encaixa neste misto do estranho isomorfismo cultivado entre o jornalista e a realidade. A escola balsemânica, ensinada em muitas das madrassas contemporâneas, prega o primado do relato. Sempre que a realidade está em desacordo com o relato, corrige-se a realidade. Quando a realidade está completamente em desacordo com a notícia, passa-se para a novidade seguinte.

O sexto tomo é, e não é, mais complexo já que deveria ser regido pelo estrito rigor dos balancetes de contas, mas acaba por se espraiar pelo difuso dos estados de alma, e aqui tenho de explicar: até ao verão, a Europa, ou as europas, se preferirem, agonizavam, entre os pobres, que estavam em crise, e os ricos que exerciam o seu sadismo da severidade. No dia em que as redes de traficantes a bombardearam com mísseis humanos com balas ao colo, começaram a salivar, e mostraram que o pavlovianismo, à falta de melhor, estava vivo, e recomendava-se. Imediatamente apareceu dinheiro para tudo, e lugar para todos. Creio que o Syriza irá adorar.

O sétimo tomo é um mera nota cínica, de rodapé, fundada no anterior, em que se pergunta como é que estados que estavam em pré bancarrota, e outros, que tanto falavam em contenção e austeridade, subitamente abrem, para os filhos dos outros, os cordões à bolsa, depois de os terem fechado para os seus.

O oitavo tomo é aquele em que os que apontaram a mira aos cavalos de tróia misturaram tudo o anterior, e decidiram fazer uma simples guerra de efeitos, baseada na surpresa e na publicidade doentia dos órgãos de intoxicação social. Pavlovianamente, onde sabem que o jornalista saliva com crianças, encheram de crianças as televisões; onde a Europa saliva com fundos de emergência, despejaram os seus excedentes populacionais.

O nono tomo também não seria possível sem os anteriores, e fundamenta-se numa espécie de crise da culpa, que geriu os estados europeus pós coloniais. Aqui, já se fez a mistura entre os desgraçados a quem destruíram, com a guerra, a pátria, e os que foram enganados com a miragem do eldorado. Curiosamente, vendeu-se bem a versão daqueles que pouco tinham e iam em busca dos lugares onde havia mais, Cinicamente, esse "mais haver" é igualmente proporcional, e, na teoria, dar me ia direito a invadir as mansões de East Upper Side, só por ter ouvido dizer que lá se vivia melhor, e haver uma lei imediata de justiça universal, que me permitia só olhar para cima, chegar, agarrar e instalar.

O décimo tomo é o de um problema ao qual ninguém decide atribuir um nome, já que a história dos "migrantes", se retirarmos os que realmente tiveram de fugir, e não fugir para lugares pré definidos, mas tão só para onde podiam fugir, é uma espécie de história de uma cruel agência de viagens, que vendesse lugares apenas de ida, sem se preocupar com assegurar lugares e reservas no hotel de chegada. O corolário disto tudo é uma surpreendente paródia, que nem ao Solnado lembraria, em que alguém imprevistamente despeja, às portas da Europa, e às horas estudadas dos noticiários, milhares de bilhetes de ida, para um hotel que não foi avisado. Creio que esta versão desagrada profundamente às madrassas balsemânicas, pelo que a escarrapacho já aqui.

Por fim, vem o lado kafkiano da história, em que, postos em curto circuito circular, as fronteiras europeias empurram, de umas para as outras, o longo carrocel da paródia em que se tornou o "eldorado" dos mísseis humanos. No limite, a coisa deveria ter sido estendida a Praga, e os "migrantes" passariam o resto da existência a circular em comboios de trajetórias infinitas e fechadas, enquanto, também kafkianas, se multiplicariam cada vez mais altas muralhas da china. Excluída a literatura, esta situação aponta para o despertar, na Europa, do pior da Europa, das defesas nacionalistas e ultranacionalistas, e a gangrena do Totalitarismo, eventualmente, a única coisa que une, num só fôlego, Obama, Putin, ISIS, Bilderberg e traficantes, diferentes rostos de uma mesma idade das trevas.

O epílogo disto tudo não será dignificante. Se formos otimistas e excluirmos o previsível banho de sangue, entre polícias, milícias, protestos e populares -- a Sérvia ainda não esmagou, por que está à espera de integrar o marasmo europeu -- as verdadeiras defesas da fronteira comum só agora se irão posicionar: com o dia 23, entra em campo o batalhão Outono, que, entre ameaços e arrepios, anuncia o General Inverno, sempre grande e incontornável vencedor, pelo dizimar, destas deslocações, se bem estarão lembrados os nossos antepassados, Napoleão e Adolph de Áustria.


(Quarteto da estação fria, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")

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